Criadores Respondem: Natália Garcia e o "Cidades para Pessoas"

A gente adora conversar com gente que tem ideias sensacionais. Depois de ter entrevistado o Carlos Filho, do Rabiscaria, o Ibrahim Cesar, do “Uma Breve História do Amor”, e o Gustavo Carneiro, do Ajude um Repórter, é a vez da Natália, que quer mudar o mundo com o seu Cidades para Pessoas.

1 - Curiosidade nossa: de onde vem essa paixão por bicicletas?

Eu venho de uma família de classe média. Aos 18 anos, ganhei meu primeiro carro, um gol. Três anos depois, o troquei por um polo. Aos 25 eu já era a típica paulistana estressada que vivia reclamando do trânsito, tinha engordado uns 10 quilos, vivia cansada, sem tempo de praticar esportes… e comecei a flertar com a ideia de me locomover de bicicleta pela cidade. Descobri, então, que existiam bicicletas dobráveis e achei que aquela seria a melhor solução para mim – afinal eu poderia carregá-la a qualquer hora dentro do metrô. No dia que eu comprei minha bicicleta parecia uma criança. Não cabia em mim de tanta felicidade. Fui dar uma volta pelo meu bairro para experimentar a magrela e conheci duas lojas, uma manicure e um monte de gente que eu nunca tinha visto no meu bairro, porque eu me locomovia protegida por uma armadura de 1 tonelada, o carro. Essa foi a sensação: tirei essa proteção de volta de mim e comecei a me relacionar com as pessoas e a cidade de um jeito completamente diferente. No caminho para o trabalho, parava na feira para tomar um caldo de cana. Nas ruas dos bairros, as crianças sempre me viam e gritavam “olha, mãe, a moça na bicicleta”. Dá para não se apaixonar?

2 - A gente adorou a ideia de bike-anjo nas recompensas. Você já ajudou alguém a perder o medo de dar suas primeiras pedaladas em São Paulo?

Já ajudei muita gente a começar a pedalar e já incentivei várias outras que começaram por conta própria.  É preciso ter muito zelo por quem está começando a pedalar em São Paulo – já que o trânsito da cidade é uma selva. Então, a gente sempre evita grandes avenidas, tenta cortar por dentro dos bairros e desmistifica alguns tabus. Por exemplo, muita gente acha que andar na contramão é mais seguro, mas não é. Primeiro porque, em caso de colisão, a velocidade do motorista que bater de frente com você é somada à sua velocidade de bicicleta e o impacto é muito maior. Segundo porque nenhum pedestre olha para o sentido da contramão e muitas vezes correm para atravessar antes que venha outro carro. Já colidi com pedestres assim. E a reação de quem consegue fazer o percursso, por exemplo, de casa até o trabalho é muito positiva. Ficam surpresos porque é mais fácil do que imaginavam. E, quando ficam mais experientes, se animam para ensinar outras pessoas a pedalar. 

3 - Parece que o trabalho do Jan Gehl impactou bastante a sua forma de ver as cidades. Como você conheceu o trabalho dele? E qual foi aquele momento que você falou “tenho que fazer alguma coisa a respeito disso!”?

Eu conheci o trabalho do Jan Gehl quando participei de um projeto chamado !sso não é Normal (www.issonaoenormal.com.br). É um site que relaciona mudanças climáticas aos modelos urbanos de cidades brasileiras. Uma das matérias que fiz para esse site era sobre soluções criativas aplicadas em outras cidades que poderiam ser interessantes para São Paulo. E uma dessas soluções era o plano do Jan Gehl para revitalizar o centro de Melbourne, na Austrália. Na época, fiz algumas perguntas a ele por e-mail e fiquei maravilhada com seu trabalho. O Jan Gehl é dinamarquês e seu trabalho começou em Copenhagen. Em 1962 ele criou a primeira rua para pedestres da cidade e começou o trabalho de adequá-la às pessoas, em vez de aos carros. De lá para cá ele trabalha no Gehl Architects, um escritório que tem como lema: primeiro as pessoas, depois os prédios, depois as ruas. A ideia de fazer o Cidades para Pessoas brotou naquela primeira entrevista que fiz com ele e passei alguns meses amadurecendo até chegar ao modelo do que é o projeto hoje. 

4 - O que você acha que mais falta para que as cidades se tornem cada vez melhor para as pessoas? (Comprometimento das autoridades? Movimentação popular? Apoio de empresas, etc.)

Em primeiro lugar falta não só comprometimento das autoridades. Tem um monte de autoridades comprometida com “melhorar a cidade”. A questão é: melhorar para quem? Ontem mesmo o prefeito Gilberto Kassab anunciou um “plano estratégico” de construir mais vias expressas em São Paulo. Todos os especialistas ouvidos sobre esse assunto acham esse plano um retrocesso. É matematicamente comprovado: quanto mais ruas, mais carros, quanto menos ruas, menos carros. Em uma cidade em que 1000 novos veículos são colocados nas ruas todos os dias, fica difícil de conceber que um prefeito ainda ache que precisa investir em infraestrutura para dar vazão a esses veículos, em vez de criar mais corredores de ônibus, ciclovias, etc. Outra medida que mostrou um retrocesso foi a permissão para os carros voltarem a estacionar nas ruas de moema. O estacionamento nas ruas tinha sido proibido, mas voltou a ser permitido depois de protesto dos comerciantes. Quem foi que disse que o espaço público pode ficar entulhado de carros particulares? 

Então, respondendo a pergunta, eu vejo movimentações populares (plataforma cidades sustentáveis, rede social por cidades justas e sustentáveis, fórum Cidades Democráticas, bicicletada, etc etc), eu vejo apoio de empresas (a ABCP, por exemplo, criou o portal Soluções para Cidades). Eu acho que faltam autoridades comprometidas COM AS PESSOAS. A CET tem um índice de eficiência das ruas. Segundo esse índice, é mais eficiente a rua que dá vazão a mais carros por minutos. Pouco importa se são ônibus com 100 passageiros ou carros gigantes com apenas um. Percebe que a lógica está invertida? E, convenhamos, construir uma ciclovia de 14 quilômetros, ao lado do fedido rio pinheiros, sem nenhuma saída ao longo da via, parece piada! Falta olhar para o plano diretor, seguí-lo e não sair fazendo obras desenfreadamente para eleger os companheiros de partido. Falta priorizar transporte coletivo, crescimento da cidade para o centro, não expansão para fora, gestão correta do lixo, estudar formas de permeabilizar parte do concreto que revestiu quase toda a cidade, pensar em como criar bairros menos setorizados, mais diversos, em que ricos e pobres possam conviver juntos e que sejam autosuficientes em serviços. Mas isso tudo demanda tempo. E há um pressuposto de que não dá votos. E daí, você sabe, fica difícil de apostar no caminho certo…

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Criadores Respondem: Natália Garcia e o "Cidades para Pessoas"

A gente adora conversar com gente que tem ideias sensacionais. Depois de ter entrevistado o Carlos Filho, do Rabiscaria, o Ibrahim Cesar, do “Uma Breve História do Amor”, e o Gustavo Carneiro, do Ajude um Repórter, é a vez da Natália, que quer mudar o mundo com o seu Cidades para Pessoas.

1 - Curiosidade nossa: de onde vem essa paixão por bicicletas?

Eu venho de uma família de classe média. Aos 18 anos, ganhei meu primeiro carro, um gol. Três anos depois, o troquei por um polo. Aos 25 eu já era a típica paulistana estressada que vivia reclamando do trânsito, tinha engordado uns 10 quilos, vivia cansada, sem tempo de praticar esportes… e comecei a flertar com a ideia de me locomover de bicicleta pela cidade. Descobri, então, que existiam bicicletas dobráveis e achei que aquela seria a melhor solução para mim – afinal eu poderia carregá-la a qualquer hora dentro do metrô. No dia que eu comprei minha bicicleta parecia uma criança. Não cabia em mim de tanta felicidade. Fui dar uma volta pelo meu bairro para experimentar a magrela e conheci duas lojas, uma manicure e um monte de gente que eu nunca tinha visto no meu bairro, porque eu me locomovia protegida por uma armadura de 1 tonelada, o carro. Essa foi a sensação: tirei essa proteção de volta de mim e comecei a me relacionar com as pessoas e a cidade de um jeito completamente diferente. No caminho para o trabalho, parava na feira para tomar um caldo de cana. Nas ruas dos bairros, as crianças sempre me viam e gritavam “olha, mãe, a moça na bicicleta”. Dá para não se apaixonar?

2 - A gente adorou a ideia de bike-anjo nas recompensas. Você já ajudou alguém a perder o medo de dar suas primeiras pedaladas em São Paulo?

Já ajudei muita gente a começar a pedalar e já incentivei várias outras que começaram por conta própria.  É preciso ter muito zelo por quem está começando a pedalar em São Paulo – já que o trânsito da cidade é uma selva. Então, a gente sempre evita grandes avenidas, tenta cortar por dentro dos bairros e desmistifica alguns tabus. Por exemplo, muita gente acha que andar na contramão é mais seguro, mas não é. Primeiro porque, em caso de colisão, a velocidade do motorista que bater de frente com você é somada à sua velocidade de bicicleta e o impacto é muito maior. Segundo porque nenhum pedestre olha para o sentido da contramão e muitas vezes correm para atravessar antes que venha outro carro. Já colidi com pedestres assim. E a reação de quem consegue fazer o percursso, por exemplo, de casa até o trabalho é muito positiva. Ficam surpresos porque é mais fácil do que imaginavam. E, quando ficam mais experientes, se animam para ensinar outras pessoas a pedalar. 

3 - Parece que o trabalho do Jan Gehl impactou bastante a sua forma de ver as cidades. Como você conheceu o trabalho dele? E qual foi aquele momento que você falou “tenho que fazer alguma coisa a respeito disso!”?

Eu conheci o trabalho do Jan Gehl quando participei de um projeto chamado !sso não é Normal (www.issonaoenormal.com.br). É um site que relaciona mudanças climáticas aos modelos urbanos de cidades brasileiras. Uma das matérias que fiz para esse site era sobre soluções criativas aplicadas em outras cidades que poderiam ser interessantes para São Paulo. E uma dessas soluções era o plano do Jan Gehl para revitalizar o centro de Melbourne, na Austrália. Na época, fiz algumas perguntas a ele por e-mail e fiquei maravilhada com seu trabalho. O Jan Gehl é dinamarquês e seu trabalho começou em Copenhagen. Em 1962 ele criou a primeira rua para pedestres da cidade e começou o trabalho de adequá-la às pessoas, em vez de aos carros. De lá para cá ele trabalha no Gehl Architects, um escritório que tem como lema: primeiro as pessoas, depois os prédios, depois as ruas. A ideia de fazer o Cidades para Pessoas brotou naquela primeira entrevista que fiz com ele e passei alguns meses amadurecendo até chegar ao modelo do que é o projeto hoje. 

4 - O que você acha que mais falta para que as cidades se tornem cada vez melhor para as pessoas? (Comprometimento das autoridades? Movimentação popular? Apoio de empresas, etc.)

Em primeiro lugar falta não só comprometimento das autoridades. Tem um monte de autoridades comprometida com “melhorar a cidade”. A questão é: melhorar para quem? Ontem mesmo o prefeito Gilberto Kassab anunciou um “plano estratégico” de construir mais vias expressas em São Paulo. Todos os especialistas ouvidos sobre esse assunto acham esse plano um retrocesso. É matematicamente comprovado: quanto mais ruas, mais carros, quanto menos ruas, menos carros. Em uma cidade em que 1000 novos veículos são colocados nas ruas todos os dias, fica difícil de conceber que um prefeito ainda ache que precisa investir em infraestrutura para dar vazão a esses veículos, em vez de criar mais corredores de ônibus, ciclovias, etc. Outra medida que mostrou um retrocesso foi a permissão para os carros voltarem a estacionar nas ruas de moema. O estacionamento nas ruas tinha sido proibido, mas voltou a ser permitido depois de protesto dos comerciantes. Quem foi que disse que o espaço público pode ficar entulhado de carros particulares? 

Então, respondendo a pergunta, eu vejo movimentações populares (plataforma cidades sustentáveis, rede social por cidades justas e sustentáveis, fórum Cidades Democráticas, bicicletada, etc etc), eu vejo apoio de empresas (a ABCP, por exemplo, criou o portal Soluções para Cidades). Eu acho que faltam autoridades comprometidas COM AS PESSOAS. A CET tem um índice de eficiência das ruas. Segundo esse índice, é mais eficiente a rua que dá vazão a mais carros por minutos. Pouco importa se são ônibus com 100 passageiros ou carros gigantes com apenas um. Percebe que a lógica está invertida? E, convenhamos, construir uma ciclovia de 14 quilômetros, ao lado do fedido rio pinheiros, sem nenhuma saída ao longo da via, parece piada! Falta olhar para o plano diretor, seguí-lo e não sair fazendo obras desenfreadamente para eleger os companheiros de partido. Falta priorizar transporte coletivo, crescimento da cidade para o centro, não expansão para fora, gestão correta do lixo, estudar formas de permeabilizar parte do concreto que revestiu quase toda a cidade, pensar em como criar bairros menos setorizados, mais diversos, em que ricos e pobres possam conviver juntos e que sejam autosuficientes em serviços. Mas isso tudo demanda tempo. E há um pressuposto de que não dá votos. E daí, você sabe, fica difícil de apostar no caminho certo…

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