Criar é prática, não dom

Quantas vezes, diante do trabalho de um artista, você já pensou: “Tem gente que tem dom mesmo…”? Não adianta negar, pois sabemos que existe um imaginário coletivo que fortalece essa ideia.

Mas a realidade é outra, tanto que essa crença não resiste ao primeiro encontro honesto com o fazer criativo. David Bayles e Ted Orland refletem sobre isso em Arte & Medo (Seiva, 2024), discorrendo como a arte não nasce do talento, mas da prática. Até porque criar é repetir, errar, ajustar e voltar no dia seguinte até concluir. E o que muita gente chama de “dom” é, na verdade, onde mora a mágica: na persistência.

Bora tirar o elefante da sala? Nossa comunidade lida diariamente com esse imaginário, e está mais do que na hora de desmistificar algumas coisas. Para isso, convidamos Raphael Salimena, quadrinista, que entrega tirinhas praticamente todos os dias aos assinantes de seu financiamento coletivo Linhadotrem aqui, no Catarse. Desde 2006, ele já publicou quase duas mil tiras, ganhou cinco HQ Mix e lançou três livros. É um artista que transformou a criatividade em um ofício contínuo e íntimo, cuja vivência tem muito a nos ensinar.

Então vamos direito ao ponto. Chegou o momento de trazer o mito do talento e da perfeição para a conversa.

Mito #1: nascer com o dom

Sabe aquele momento em que você decide criar, imagina tudo bonitinho na cabeça… e, quando tenta colocar no mundo, nada sai como deveria? A sensação é quase sempre a mesma: “não é pra mim”, “não tenho talento”, “não nasci pra isso”.

Onze a cada dez artistas vão dizer que esse é justamente o ponto em que o processo criativo começa de verdade. E dizem isso depois de já terem passado inúmeras vezes pela mesma frustração. O segredo está quando o véu cai e a gente entende que criar é lidar com o rascunho torto, com a discrepância entre imaginação e execução. E, longe de ser um defeito, esse desencontro passa a ser compreendido como método.

Raphael Salimena descobriu isso cedo. Ele gostava de desenhar, e por isso desenhava muito. E, por desenhar muito, melhorava. Sem mito, sem epifania, ou como ele diz de um jeito muito direto: “Desenho é totalmente prática.” E o mais curioso é que, para ele, o desenho nem sempre foi o ápice do processo criativo. Muitas vezes era quase o oposto:

“Acho que todo mundo que gosta acaba sempre praticando, mas muito rápido entende que é aquilo que te faz melhorar. Mas tem uma coisa: eu nunca vi muito o desenho como o ato criativo em si, mas como o momento de fazer um trabalho quase braçal pra executar o que eu criava. Na real, eu já tive épocas de não gostar de desenhar justamente por causa disso – era a parte chata, porém necessária pra um quadrinho existir.”

“Quando crianças, somos criatividade pura, e esse é o estado natural do ser humano. Mas ao longo da vida vamos encontrando vários momentos em que mandam a gente parar com isso e se padronizar por diversas razões. Nós, artistas, somos os que continuam buscando esse estado mágico da infância que faz as coisas acontecerem e trazemos tanta coisa ao mundo que não existiria se não fosse cada um de nós. E isso não tem a ver com fazer arte profissionalmente. Muita gente trabalha em outras coisas e leva a vida com criatividade o tempo todo. Quem conta uma história ou piada na mesa de um jeito que faz todos vivenciarem aquilo está fazendo o que os antigos xamãs faziam. É uma das formas mais antigas de arte. Quem cantarola o tempo todo está literalmente fazendo música, e por aí vai.”

Os jornais amam publicar notícias sobre prodígios da música que, aos cinco anos, performam solos em recitais, mas raramente lemos que algum deles virou um Mozart. A questão é que, independentemente do dom inato, Mozart também foi um artista que aprendeu a trabalhar em sua obra, e se desenvolveu a partir daí. Nesse aspecto, ele divide um traço comum com o restante de nós. Artistas melhoram ao aprimorar suas habilidades ou ao adquirir novas; eles melhoram aprendendo a trabalhar e aprendendo com o ato de trabalhar.
Bayles e Orland

LEIA TAMBÉM: Por que a gente sente medo de criar?

Mito #2: nascer com o estilo pronto

Será justamente no atrito entre imaginar, tentar, errar e tentar de novo – sempre descobrindo que o resultado nunca acompanha totalmente o imaginado – que algo inesperado começa a surgir: o estilo. Não aquele estilo pensado como marca registrada, mas o estilo que nasce quase como um acidente, como consequência inevitável do próprio jeito de errar. Raphael fala disso com uma franqueza que desmonta qualquer fantasia de dom inato: “Nosso estilo é o resultado de como a gente erra na hora de representar a realidade.”

Ele dá um exemplo ótimo do próprio processo, em que a liberdade aparece justamente quando ele aceita essas falhas: “Desenhar um carro de maneira realista pra mim é um pesadelo, com todas aquelas linhas matematicamente harmonizadas. Mas quando eu desenho os meus carros, eles parecem ser feitos de massinha, não fazem sentido nenhum fisicamente, mas eu adoro desenhá-los e quem está lendo ainda entende que são carros. O que importa pra mim como quadrinista é passar a ideia da minha maneira, e são essas ‘imperfeições’ que fazem que cada artista tenha uma voz única.”

É nesse rascunho torto, onde nada sai do jeito que deveria, que muita gente desanima. Porque a sensação que surge é de que nada avança. Mas é justamente aí que o rascunho começa a fazer sentido. E aqui está o segredo do Raphael: “É não ligar pro resultado. Pra mim o estilo é a chave de tudo. É a maneira que a mente e o corpo encontram, depois de muita prática, de colocar as coisas pra fora do jeito mais gostoso e natural possível.”

E quando o desânimo bate de verdade? A tal “falta de inspiração”? Como alguém que publica tirinhas quase todos os dias para seus apoiadores, Raphael lida com isso de um modo quase desarmante – e cheio de humor.

“Quando ‘não tenho inspiração’ falo sobre isso. E tenho muitas tiras sobre não ter ideias ou inspiração, e várias delas são melhores do que outras que eu fiz ‘inspirado’. Algo que percebi é que tenho a sorte de poder trabalhar quando estou com vontade e tesão pra criar. Se não estou no melhor momento, faço outra coisa e espero vir. Às vezes não vem o dia inteiro e atraso as tiras, porque sei que em outro momento faço duas ou três. Tem épocas que gosto de fazer de manhã, outras de noite, não tem regra. E gosto de fazer a tira e publicar na hora. Naquele momento, sinto que é a melhor coisa que tenho na cabeça. Se acúmulo tiras, o momento passa e eu olho e penso: ‘que diabos é isso?’. Aí eu tento mudar ou abandono a ideia.”

No fim das contas, o que o Raphael mostra – sem pretensão de ensinar ninguém – é que estilo, inspiração e rotina não são destinos, muito menos fórmulas. Eles aparecem no caminho. No tropeço, no acerto acidental, na repetição que parece igual mas nunca é. Aparecem quando a gente insiste, ajusta, volta e deixa que o próprio processo molde o trabalho.

Exigir perfeição é negar a comum (e universal) humanidade, como se você estivesse melhor sem ela. No entanto, essa humanidade é a fonte máxima do seu trabalho; o perfeccionismo afasta você exatamente do que é necessário para realizar seu ofício. Para continuar, é preciso reconhecer que a perfeição em si é (paradoxalmente) um conceito falho.
Bayles e Orland

Mito #3: nascer com talento

Falamos sobre dom, sobre estilo, mas falta entrar naquele ponto que quase sempre aparece quando o assunto é criar: o tal do talento. E quanto a isto Bayles e Orland são extremamente objetivos e didáticos: “Se talento fosse um pré-requisito, então, quanto melhor a obra, mais fácil teria sido criá-la. Mas, infelizmente, é raro o destino ser tão generoso. Para cada artista que desenvolve uma visão madura com graça e rapidez, inúmeros outros nutriram sua arte de forma trabalhosa atrás de alguns períodos férteis e outros de seca, de falsos começos e explosões de avanço, através de mudanças sucessivas e significativas de direção, meio e temática.”

Dom costuma ser visto como algo mágico, quase uma sorte genética, do tipo: você tem ou não tem. Talento, por outro lado, nasce de outra coisa: repetição, tentativa, tropeço, ajuste fino. Ele é menos faísca divina e genética, e mais hábito acumulado. E é justamente aí que muita gente confunde o que é treinável com o que seria inato. Quando a gente separa essas duas ideias, fica muito mais claro como o fazer contínuo transforma qualquer prática criativa.

É nesse ponto que o Raphael traz uma visão que desmonta de vez a ideia de talento como algo fixo. Quando ele passou a produzir quase todos os dias, tudo mudou.

“Quando eu fazia uma tira por semana ou quinzena, eu tinha que pensar muito em como fazer o ‘melhor’ possível, mas como falei antes, descobri depois que isso não existe. Produzir quase diariamente me permite experimentar muito mais, sempre com o conforto de que se fizer algo que alguém vai odiar hoje, amanhã vai ter outra coisa completamente diferente. E eu gosto muito muito dessa liberdade de fazer algo que pode ser que alguém despreze. Acho que é a falta total de freios que faz a gente experimentar tudo que pode e que leva a arte para os melhores lugares ocasionalmente. Outro ponto que adoro é poder produzir com a certeza de que quem está lendo a tira de hoje também leu a de ontem. Isso me permite fazer continuações ou retomar elementos de tiras da semana anterior. Eu adoro fazer piadinhas escondidas com isso, e aparentemente a galera que percebe curte muito também.”

Talento é uma armadilha, uma ilusão. No final das contas, as perguntas objetivas sobre talento se resumem a: Quem se importa? Quem vai saber disso? Que diferença isso faria? E as respostas objetivas são: ninguém, ninguém e nenhuma.
Bayles e Orland

Fato #1: quem quer, cria!

Nem vou me alongar, pois a pergunta foi objetiva e a resposta mais ainda. E é pra você, artista, ou admirador de arte, que adora acompanhar a nossa comunidade do Catarse, mas acredita que não tem talento para criar. Raphael tem um recadinho para você:

Se você tem talento pra se autodepreciar, ou seja, criar coisas negativas a respeito de si, tá provado que consegue criar. É só virar o foco pra outro canto… ou não. Grandes quadrinistas fazem maravilhas em cima da autodepreciação, como o Crumb, o Harvey Pekar, o Ricardo Coimbra, a Fabiane Langona ou a Sirlanney. Então a criação já tá até pronta, só falta botar no papel e com a prática ela vai se lapidar. Essa coisa do "dom" e "talento" é engraçada, geralmente quem fala que não tem, ou nunca tentou fazer a coisa de fato. Ou tentou uma vez e parou. A única coisa que isso diz é que a pessoa não gosta de fazer aquilo. Porque quando a gente gosta, a gente faz porque se diverte. E por isso acaba fazendo muitas vezes. A melhora técnica é só consequência.

Se artista equivale a identidade, então quando (inevitavelmente) você faz uma obra imperfeita, você é uma pessoa imperfeita, e quando (pior ainda) você não cria nada, nem uma pessoa você é! Parece muito mais saudável se desviar desse ciclo vicioso reconhecendo que há variados caminhos para a criação artística bem-sucedida – de recluso a extravagante, de intuitivo a intelectual, de arte popular a arte erudita. Um desses caminhos é o seu.
Bayles e Orland

Fato #2: criar é coletivo, e apoiar muda tudo!

Existe uma ideia persistente de que o trabalho criativo é um gesto solitário. Aquela do artista em um cômodo, fechado no próprio mundo, mergulhado em suas ideias, produzindo com um copo de café ao lado. Só que isso é, no mínimo, uma meia-verdade. 

O ato de criar, de colocar a mão na massa, pode até acontecer de forma solitária, mas ela se sustenta – e muitas vezes só é possível – quando encontra quem a acolhe. Apoiar um artista não é só “ajudar o trabalho a continuar”, é participar do processo, ainda que de forma indireta. É poder ajudá-lo criar um ambiente onde possa experimentar, arriscar, errar, acertar e existir com mais liberdade.

E aqui, no Catarse, isso acontece com todos os artistas! Por exemplo, a relação do Raphael com a comunidade que acompanha e financia o Linha do Trem. Para ele, esse vínculo não é um detalhe lateral do trabalho, é um eixo que muda sua motivação, seu ritmo e até a forma como enxerga as tiras que produz. Ele descreve essa troca assim:

“Apesar de existir uma relação, às vezes é bem esquisito por ser bem mais silenciosa do que a das redes sociais. Quando alguém responde uma tira, é porque realmente quer dizer algo sobre aquilo, enquanto nas redes a gente é empurrado pra comentar sobre tudo, sem qualquer reflexão antes. É uma relação muito mais verdadeira, humana e positiva. E é por causa dela que crio, cada tira que faço hoje é com uma alegria imensa, o que não acontecia quando eu produzia pensando em redes sociais.”

Esse tipo de apoio também abre caminhos criativos. Raphael não toma as sugestões como pedidos diretos, mas como faíscas para que ele crie algo que surgiu a partir de sua reflexão. Ele compartilha:

“Já tirei ideia de todos os lugares possíveis! Mas elas nunca vêm de sugestões diretas, porque nesse caso não fui eu quem criou aquilo e não sinto vontade de colocar no papel. É totalmente diferente de quando alguém fala algo e aquilo me dá vontade de criar uma tira sobre. Isso eu faço o tempo todo, e quem passa algumas horas comigo irremediavelmente vai ser ‘roubado’ desse jeito.”

E talvez o maior símbolo dessa parceria entre artista e público seja a campanha do livro homônimo Linha do Trem: Voltamos à Programação Normal”, que não nasce como um projeto isolado, mas como um recorte vivo dessa troca diária com sua comunidade, e agora em parceria com a Editora Draco. 

Linha do Trem: voltamos à programação normal é uma coletânea crônicas visuais afiada e sem filtros do nosso cotidiano, grande parte inédita para o grande público, reunida em cerca de 260 páginas coloridas, num volume em capa dura, formato 20,5 × 20,5 cm, com miolo em papel offset de alta gramatura. Você não vai deixar de apoiar a campanha, né? Ainda mais agora, sabendo o quanto o Raphael se dedica – repetida e diariamente – a criar, experimentar e entregar algo que só existe porque a comunidade existe com ele.

Lorena Camilo
Mestra em Estudos Literários na área de pesquisa Literaturas Modernas e Contemporâneas; e bacharel em Letras em duas ênfases, Estudos sobre Edição com formação complementar em Comunicação Social e em Estudos Literários pela UFMG. É editora, revisora e redatora, além de aficionada por arte e cultura pop.

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Criar é prática, não dom

Quantas vezes, diante do trabalho de um artista, você já pensou: “Tem gente que tem dom mesmo…”? Não adianta negar, pois sabemos que existe um imaginário coletivo que fortalece essa ideia.

Mas a realidade é outra, tanto que essa crença não resiste ao primeiro encontro honesto com o fazer criativo. David Bayles e Ted Orland refletem sobre isso em Arte & Medo (Seiva, 2024), discorrendo como a arte não nasce do talento, mas da prática. Até porque criar é repetir, errar, ajustar e voltar no dia seguinte até concluir. E o que muita gente chama de “dom” é, na verdade, onde mora a mágica: na persistência.

Bora tirar o elefante da sala? Nossa comunidade lida diariamente com esse imaginário, e está mais do que na hora de desmistificar algumas coisas. Para isso, convidamos Raphael Salimena, quadrinista, que entrega tirinhas praticamente todos os dias aos assinantes de seu financiamento coletivo Linhadotrem aqui, no Catarse. Desde 2006, ele já publicou quase duas mil tiras, ganhou cinco HQ Mix e lançou três livros. É um artista que transformou a criatividade em um ofício contínuo e íntimo, cuja vivência tem muito a nos ensinar.

Então vamos direito ao ponto. Chegou o momento de trazer o mito do talento e da perfeição para a conversa.

Mito #1: nascer com o dom

Sabe aquele momento em que você decide criar, imagina tudo bonitinho na cabeça… e, quando tenta colocar no mundo, nada sai como deveria? A sensação é quase sempre a mesma: “não é pra mim”, “não tenho talento”, “não nasci pra isso”.

Onze a cada dez artistas vão dizer que esse é justamente o ponto em que o processo criativo começa de verdade. E dizem isso depois de já terem passado inúmeras vezes pela mesma frustração. O segredo está quando o véu cai e a gente entende que criar é lidar com o rascunho torto, com a discrepância entre imaginação e execução. E, longe de ser um defeito, esse desencontro passa a ser compreendido como método.

Raphael Salimena descobriu isso cedo. Ele gostava de desenhar, e por isso desenhava muito. E, por desenhar muito, melhorava. Sem mito, sem epifania, ou como ele diz de um jeito muito direto: “Desenho é totalmente prática.” E o mais curioso é que, para ele, o desenho nem sempre foi o ápice do processo criativo. Muitas vezes era quase o oposto:

“Acho que todo mundo que gosta acaba sempre praticando, mas muito rápido entende que é aquilo que te faz melhorar. Mas tem uma coisa: eu nunca vi muito o desenho como o ato criativo em si, mas como o momento de fazer um trabalho quase braçal pra executar o que eu criava. Na real, eu já tive épocas de não gostar de desenhar justamente por causa disso – era a parte chata, porém necessária pra um quadrinho existir.”

“Quando crianças, somos criatividade pura, e esse é o estado natural do ser humano. Mas ao longo da vida vamos encontrando vários momentos em que mandam a gente parar com isso e se padronizar por diversas razões. Nós, artistas, somos os que continuam buscando esse estado mágico da infância que faz as coisas acontecerem e trazemos tanta coisa ao mundo que não existiria se não fosse cada um de nós. E isso não tem a ver com fazer arte profissionalmente. Muita gente trabalha em outras coisas e leva a vida com criatividade o tempo todo. Quem conta uma história ou piada na mesa de um jeito que faz todos vivenciarem aquilo está fazendo o que os antigos xamãs faziam. É uma das formas mais antigas de arte. Quem cantarola o tempo todo está literalmente fazendo música, e por aí vai.”

Os jornais amam publicar notícias sobre prodígios da música que, aos cinco anos, performam solos em recitais, mas raramente lemos que algum deles virou um Mozart. A questão é que, independentemente do dom inato, Mozart também foi um artista que aprendeu a trabalhar em sua obra, e se desenvolveu a partir daí. Nesse aspecto, ele divide um traço comum com o restante de nós. Artistas melhoram ao aprimorar suas habilidades ou ao adquirir novas; eles melhoram aprendendo a trabalhar e aprendendo com o ato de trabalhar.
Bayles e Orland

LEIA TAMBÉM: Por que a gente sente medo de criar?

Mito #2: nascer com o estilo pronto

Será justamente no atrito entre imaginar, tentar, errar e tentar de novo – sempre descobrindo que o resultado nunca acompanha totalmente o imaginado – que algo inesperado começa a surgir: o estilo. Não aquele estilo pensado como marca registrada, mas o estilo que nasce quase como um acidente, como consequência inevitável do próprio jeito de errar. Raphael fala disso com uma franqueza que desmonta qualquer fantasia de dom inato: “Nosso estilo é o resultado de como a gente erra na hora de representar a realidade.”

Ele dá um exemplo ótimo do próprio processo, em que a liberdade aparece justamente quando ele aceita essas falhas: “Desenhar um carro de maneira realista pra mim é um pesadelo, com todas aquelas linhas matematicamente harmonizadas. Mas quando eu desenho os meus carros, eles parecem ser feitos de massinha, não fazem sentido nenhum fisicamente, mas eu adoro desenhá-los e quem está lendo ainda entende que são carros. O que importa pra mim como quadrinista é passar a ideia da minha maneira, e são essas ‘imperfeições’ que fazem que cada artista tenha uma voz única.”

É nesse rascunho torto, onde nada sai do jeito que deveria, que muita gente desanima. Porque a sensação que surge é de que nada avança. Mas é justamente aí que o rascunho começa a fazer sentido. E aqui está o segredo do Raphael: “É não ligar pro resultado. Pra mim o estilo é a chave de tudo. É a maneira que a mente e o corpo encontram, depois de muita prática, de colocar as coisas pra fora do jeito mais gostoso e natural possível.”

E quando o desânimo bate de verdade? A tal “falta de inspiração”? Como alguém que publica tirinhas quase todos os dias para seus apoiadores, Raphael lida com isso de um modo quase desarmante – e cheio de humor.

“Quando ‘não tenho inspiração’ falo sobre isso. E tenho muitas tiras sobre não ter ideias ou inspiração, e várias delas são melhores do que outras que eu fiz ‘inspirado’. Algo que percebi é que tenho a sorte de poder trabalhar quando estou com vontade e tesão pra criar. Se não estou no melhor momento, faço outra coisa e espero vir. Às vezes não vem o dia inteiro e atraso as tiras, porque sei que em outro momento faço duas ou três. Tem épocas que gosto de fazer de manhã, outras de noite, não tem regra. E gosto de fazer a tira e publicar na hora. Naquele momento, sinto que é a melhor coisa que tenho na cabeça. Se acúmulo tiras, o momento passa e eu olho e penso: ‘que diabos é isso?’. Aí eu tento mudar ou abandono a ideia.”

No fim das contas, o que o Raphael mostra – sem pretensão de ensinar ninguém – é que estilo, inspiração e rotina não são destinos, muito menos fórmulas. Eles aparecem no caminho. No tropeço, no acerto acidental, na repetição que parece igual mas nunca é. Aparecem quando a gente insiste, ajusta, volta e deixa que o próprio processo molde o trabalho.

Exigir perfeição é negar a comum (e universal) humanidade, como se você estivesse melhor sem ela. No entanto, essa humanidade é a fonte máxima do seu trabalho; o perfeccionismo afasta você exatamente do que é necessário para realizar seu ofício. Para continuar, é preciso reconhecer que a perfeição em si é (paradoxalmente) um conceito falho.
Bayles e Orland

Mito #3: nascer com talento

Falamos sobre dom, sobre estilo, mas falta entrar naquele ponto que quase sempre aparece quando o assunto é criar: o tal do talento. E quanto a isto Bayles e Orland são extremamente objetivos e didáticos: “Se talento fosse um pré-requisito, então, quanto melhor a obra, mais fácil teria sido criá-la. Mas, infelizmente, é raro o destino ser tão generoso. Para cada artista que desenvolve uma visão madura com graça e rapidez, inúmeros outros nutriram sua arte de forma trabalhosa atrás de alguns períodos férteis e outros de seca, de falsos começos e explosões de avanço, através de mudanças sucessivas e significativas de direção, meio e temática.”

Dom costuma ser visto como algo mágico, quase uma sorte genética, do tipo: você tem ou não tem. Talento, por outro lado, nasce de outra coisa: repetição, tentativa, tropeço, ajuste fino. Ele é menos faísca divina e genética, e mais hábito acumulado. E é justamente aí que muita gente confunde o que é treinável com o que seria inato. Quando a gente separa essas duas ideias, fica muito mais claro como o fazer contínuo transforma qualquer prática criativa.

É nesse ponto que o Raphael traz uma visão que desmonta de vez a ideia de talento como algo fixo. Quando ele passou a produzir quase todos os dias, tudo mudou.

“Quando eu fazia uma tira por semana ou quinzena, eu tinha que pensar muito em como fazer o ‘melhor’ possível, mas como falei antes, descobri depois que isso não existe. Produzir quase diariamente me permite experimentar muito mais, sempre com o conforto de que se fizer algo que alguém vai odiar hoje, amanhã vai ter outra coisa completamente diferente. E eu gosto muito muito dessa liberdade de fazer algo que pode ser que alguém despreze. Acho que é a falta total de freios que faz a gente experimentar tudo que pode e que leva a arte para os melhores lugares ocasionalmente. Outro ponto que adoro é poder produzir com a certeza de que quem está lendo a tira de hoje também leu a de ontem. Isso me permite fazer continuações ou retomar elementos de tiras da semana anterior. Eu adoro fazer piadinhas escondidas com isso, e aparentemente a galera que percebe curte muito também.”

Talento é uma armadilha, uma ilusão. No final das contas, as perguntas objetivas sobre talento se resumem a: Quem se importa? Quem vai saber disso? Que diferença isso faria? E as respostas objetivas são: ninguém, ninguém e nenhuma.
Bayles e Orland

Fato #1: quem quer, cria!

Nem vou me alongar, pois a pergunta foi objetiva e a resposta mais ainda. E é pra você, artista, ou admirador de arte, que adora acompanhar a nossa comunidade do Catarse, mas acredita que não tem talento para criar. Raphael tem um recadinho para você:

Se você tem talento pra se autodepreciar, ou seja, criar coisas negativas a respeito de si, tá provado que consegue criar. É só virar o foco pra outro canto… ou não. Grandes quadrinistas fazem maravilhas em cima da autodepreciação, como o Crumb, o Harvey Pekar, o Ricardo Coimbra, a Fabiane Langona ou a Sirlanney. Então a criação já tá até pronta, só falta botar no papel e com a prática ela vai se lapidar. Essa coisa do "dom" e "talento" é engraçada, geralmente quem fala que não tem, ou nunca tentou fazer a coisa de fato. Ou tentou uma vez e parou. A única coisa que isso diz é que a pessoa não gosta de fazer aquilo. Porque quando a gente gosta, a gente faz porque se diverte. E por isso acaba fazendo muitas vezes. A melhora técnica é só consequência.

Se artista equivale a identidade, então quando (inevitavelmente) você faz uma obra imperfeita, você é uma pessoa imperfeita, e quando (pior ainda) você não cria nada, nem uma pessoa você é! Parece muito mais saudável se desviar desse ciclo vicioso reconhecendo que há variados caminhos para a criação artística bem-sucedida – de recluso a extravagante, de intuitivo a intelectual, de arte popular a arte erudita. Um desses caminhos é o seu.
Bayles e Orland

Fato #2: criar é coletivo, e apoiar muda tudo!

Existe uma ideia persistente de que o trabalho criativo é um gesto solitário. Aquela do artista em um cômodo, fechado no próprio mundo, mergulhado em suas ideias, produzindo com um copo de café ao lado. Só que isso é, no mínimo, uma meia-verdade. 

O ato de criar, de colocar a mão na massa, pode até acontecer de forma solitária, mas ela se sustenta – e muitas vezes só é possível – quando encontra quem a acolhe. Apoiar um artista não é só “ajudar o trabalho a continuar”, é participar do processo, ainda que de forma indireta. É poder ajudá-lo criar um ambiente onde possa experimentar, arriscar, errar, acertar e existir com mais liberdade.

E aqui, no Catarse, isso acontece com todos os artistas! Por exemplo, a relação do Raphael com a comunidade que acompanha e financia o Linha do Trem. Para ele, esse vínculo não é um detalhe lateral do trabalho, é um eixo que muda sua motivação, seu ritmo e até a forma como enxerga as tiras que produz. Ele descreve essa troca assim:

“Apesar de existir uma relação, às vezes é bem esquisito por ser bem mais silenciosa do que a das redes sociais. Quando alguém responde uma tira, é porque realmente quer dizer algo sobre aquilo, enquanto nas redes a gente é empurrado pra comentar sobre tudo, sem qualquer reflexão antes. É uma relação muito mais verdadeira, humana e positiva. E é por causa dela que crio, cada tira que faço hoje é com uma alegria imensa, o que não acontecia quando eu produzia pensando em redes sociais.”

Esse tipo de apoio também abre caminhos criativos. Raphael não toma as sugestões como pedidos diretos, mas como faíscas para que ele crie algo que surgiu a partir de sua reflexão. Ele compartilha:

“Já tirei ideia de todos os lugares possíveis! Mas elas nunca vêm de sugestões diretas, porque nesse caso não fui eu quem criou aquilo e não sinto vontade de colocar no papel. É totalmente diferente de quando alguém fala algo e aquilo me dá vontade de criar uma tira sobre. Isso eu faço o tempo todo, e quem passa algumas horas comigo irremediavelmente vai ser ‘roubado’ desse jeito.”

E talvez o maior símbolo dessa parceria entre artista e público seja a campanha do livro homônimo Linha do Trem: Voltamos à Programação Normal”, que não nasce como um projeto isolado, mas como um recorte vivo dessa troca diária com sua comunidade, e agora em parceria com a Editora Draco. 

Linha do Trem: voltamos à programação normal é uma coletânea crônicas visuais afiada e sem filtros do nosso cotidiano, grande parte inédita para o grande público, reunida em cerca de 260 páginas coloridas, num volume em capa dura, formato 20,5 × 20,5 cm, com miolo em papel offset de alta gramatura. Você não vai deixar de apoiar a campanha, né? Ainda mais agora, sabendo o quanto o Raphael se dedica – repetida e diariamente – a criar, experimentar e entregar algo que só existe porque a comunidade existe com ele.

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