Como assim quadrinho não é literatura?
Periodicamente o debate ressurge das cinzas como a fênix, abalando o universo dos desinformados, estremecendo o mundo dos pesquisadores, aumentando a dúvida dos apreciadores e fazendo crescer a divisão de pensamentos sobre o pertencimento a uma categoria que não se encaixa. Então, estamos aqui para continuar essa conversa com um olhar mais amplo, tentando demonstrar porque, afinal, quadrinhos não são literatura.
Poderíamos começar com a citação poética do grupo Hawaianos: “Traição é traição. Romance é romance. Amor é amor. E um lance é um lance.” Simples e direto, quadrinho é quadrinho e literatura é literatura. Mas podemos pontuar algumas coisas: são artes diferentes, com técnicas, identidade e fundamentos diferentes, mesmo com objetos em comum.
É muito complexo definir o que é literatura, não podendo resumir a “uma página com letras que contam uma história". Essa lógica, a letra de uma música, um roteiro de vídeo game ou um panfleto também seriam literatura.
É fundamental destacar que a escrita nasce da necessidade de registrar, preservar e transportar a oralidade. Foi uma das primeiras formas que nossa sociedade desenvolveu para passar ensinamentos e conhecimentos adiante, de forma que, registrada em símbolos, perdurasse mais do que a vida humana. Símbolos, letras e formas cabem em um mesmo marcador de signos, mas a forma substancial é o que as separa. Literatura é, resumidamente, a ideia de brincar com a versatilidade da expressão e da estética da linguagem, utilizando os símbolos gráficos desenvolvidos social e culturalmente dentro de uma comunidade, letras e números conectadas com o idioma.
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Provavelmente essa mesma necessidade deu origem aos primeiros ideogramas das primeiras civilizações por volta de 3100 AC. Como é o caso dos hieróglifos, criados pelo povo egípcio para registros históricos, culturais e religiosos tendo também a primeira ligação entre ideograma e fonograma, basicamente a expressão gráfica da fala, como um grafema e seu conjunto de grafemas, o fonema. Diferente dos ideogramas chineses, que apareceram por volta de 2500 AC, com a lenda de Hanzi, o que ficaria conhecido como Kanji, criados pelo historiador do império amarelo chinês, Cangjie. Já os ideogramas são basicamente símbolos gráficos, desenhos que representam objetos e ideias não necessariamente ligados a um signo sonoro (fonograma), mas um símbolo relacionado a um grupo de palavras que refletem uma ideia, objeto ou até mesmo uma palavra pré estabelecida por uma comunidade.
Esses ideogramas também faziam parte dos pergaminhos carregados pela Ásia, contando histórias reais e ficcionais por uma sequência de símbolos e desenhos, formando o que conheceríamos como Arte Sequencial. Em resumo, a literatura usa certos elementos gráficos restritos ao idioma, ao signo linguístico para desenvolver sua narrativa de forma coesa e identificável e informativa, o que não é necessário com a linguagem dos quadrinhos.
Histórias em quadrinhos também são complexas de se definir. O quadrinista Harvey Pekar tentou resumir: “quadrinhos são palavras e imagens, e você pode fazer qualquer coisa com palavras e imagens.” É uma ótima diretriz, mas é preciso tomar cuidado com a aplicação, não podemos categorizar quadrinhos em qualquer material que contenha desenhos (imagens) e letras, pois um catálogo de parafusos ou um menu de restaurante também seriam quadrinhos.

A Arte Sequencial se baseia em apresentar um período de tempo e espaço sem a necessidade do signo linguístico, podendo ser sustentada através de um elemento gráfico em forma. m outras palavras, os popularmente conhecidos como “quadrinhos mudos” que vão desde tirinhas como Garfield, até novelas gráficas como Um Pedaço de Madeira e Aço, Aurora nas sombras, O Número, entre outros. Mesmo que quadrinhos não necessitem de palavras escritas para contarem suas histórias, ainda precisam seguir uma série de “regras” na composição para que as imagens operem em conjunto, criando um fluxo narrativo linear para melhor entregar sua história.
Aqui podemos destacar também o conceito de leitura tabular, que organiza um conjunto de informações em página sem necessariamente seguir uma ordem de leitura linear (da esquerda para a direita, de cima para baixo como pede o convencional literário ocidental) mas dispondo em tela, informações essenciais para que o leitor consiga se localizar e identificar elementos para que a narrativa seja melhor absorvida, seja um conjunto de imagens fracionada temporalmente em quadros, ou uma splash page, uma imagem geral do ambiente que conduz os olhos do leitor de um ponto a outro estrategicamente dentro dos acontecimentos.
Outro marcador interessante é a classificação de Ricciotto Canudo em sua proposta “Manifesto das Sete Artes", publicado em 1923, onde basicamente separa as manifestações artísticas conforme suas especificidades e conteúdos para melhor organizar historicamente práticas artísticas. Vale ressaltar que, com o avanço da tecnologia, hoje temos 11 classificações de artes.
Expressões artísticas muitas vezes podem dividir as mesmas técnicas, como o cinema usa de storyboards seguindo a lógica dos quadrinhos, ou a composição de uma canção que segue a lógica da literatura, mas o resultado final será outro. Pintura não é arte digital, Teatro não é Cinema, logo quadrinho não é Literatura.
Essa discussão nasceu a partir da elitização da literatura ao longo do século XV, como método de dominação estrutural de classes. Já os quadrinhos, desde seu surgimento, ao decorrer do século XX, foram menosprezados por ser uma mídia barata, descartável, destinada a operários e futuramente destinados a crianças. O mesmo aconteceu com o Cinema sendo menosprezado por ser popular entre a classe operária onde a burguesia frequentava mais concertos e teatros, mas esse é um debate pra outra hora, que mereceria um artigo focado nas diferenças históricas entre classes e o consumo artístico.
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Esses debates sempre tiveram uma conotação elitista com a clássica canetada acadêmica. Por mais que historicamente isso parta majoritariamente da ala da literatura, o oposto também acontece. O jornalista e pesquisador Thallys Miller, destacou uma nota do editorial da Ebal em um quadrinho do “Superman-Bi” de 1969, onde criticava a escrita da multiartista Carolina Maria de Jesus. “Ela, para nós, não é uma escritora” e “faltava-lhe base e se arvorou a escrever sobre assuntos fora de seu conhecimento.” Reforçando o estereótipo de que operários, proletários, favelados não dominam uma expressão pré estabelecida de arte, logo, não pode ser reconhecida como tal.
Carolina é autora de um dos livros mais vendidos de 1960, Quarto de Despejo, uma das pioneiras no conceito literário de escrevivência, cunhado pela autora Conceição Evaristo, além de ter sido premiada postumamente com Doutora Honoris Causa. Além disso, é referência para o Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres, um concurso lançado pelo Ministério da Cultura do Brasil em 2023.
Com isso, surgem falsas equivalências de estrutura baseada em um plano estratégico classicista como “Carolina não é digna de ser escritora”, “quadrinho não é digno de ser literatura,” ou até o caso que reacendeu essa discussão no Brasil quando, em 2023, James Akel criticou Mauricio de Sousa na disputa por uma cadeira na Academia Brasileira de Letras: “gibi não é literatura, ele (Maurício de Sousa), não tem o que acrescentar à Academia.” Ora, James estava meio certo, gibi não é literatura, só errou feio sobre o acréscimo intelectual de Maurício.
Quadrinhos não são Literatura e nem precisam ser, mas as histórias podem ser recontadas, adaptadas para diferentes mídias e seus públicos. Justamente por isso o termo “adaptações” vem antes, onde técnicas de cada arte precisam ser aplicadas para se tornarem outra, mesmo que conte uma mesma história. Assim como o Cinema vem sobrevivendo de adaptações de livros e quadrinhos nos últimos anos, a troca ocorre também com adaptações de livros para quadrinhos. Um exemplo é o próprio Quarto de Despejo de Carolina, que foi adaptado para quadrinhos por Triscila Oliveira, Vanessa Ferreira, Hely de Brito e Emanuelly Araujo. O quadrinho, inclusive, está entre os indicados do 37’ Troféu HQ Mix 2025.
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Obviamente, aqui no Catarse também estamos apoiando adaptações literárias em quadrinhos com o sucesso italiano, Pinóquio, de Cárcamo pela Figura Editora, em uma releitura que usa técnicas de pintura em aquarela, uma técnica que coincidentemente foi desenvolvida no início da era comum, por chineses e egípcios, à base de goma arábica de pigmento dissolvidos em água, e claro, somadas a estrutura de quadros sequenciais como manda o manual.
Outra indicação adapta o aclamado conto de Graciliano Ramos, Infância, pelo carioca Roberto Rosa, que deu vida e forma aos relatos autobiográficos do Velho Graça. Com traços em preto e cinza, as páginas brincam com a narrativa crítica que Graciliano aborda sobre o ambiente em que cresceu, ampliando a imersão ao consumir diversas formas de arte unidas em quadrinhos.