Traduzir quadrinhos é muito mais do que passar palavras de uma língua para outra. É decifrar ritmo, humor, sotaques e intenções escondidas entre os balões. A convite do Catarse, o tradutor e jornalista Érico Assis compartilhou 6 lições que aprendeu ao longo de anos traduzindo algumas das HQs mais marcantes publicadas no Brasil.
Do dilema dos títulos à “ginga” que nenhuma inteligência artificial consegue replicar, Érico abre bastidores de um trabalho que mistura arte, técnica e paixão por histórias bem contadas. Confira!
1. Quem traduz o título é a editora
Nos filmes, reclamam muito: por que tem títulos em português tão diferentes do original? Pois isso também acontece na literatura e nos quadrinhos. Menos, mas acontece.
Aprendi na minha primeiríssima tradução: traduzi o título do quadrinho respeitando o que o original dizia, mantendo a relação com a trama e usei uma palavra que achei sonora. A editora agradeceu a sugestão, mas informou: quem bate o martelo quanto ao título somos nós.
O título é um dos elementos mais importantes do marketing de um quadrinho, de um livro, de um filme. O título tem que vender aquela história só com o título. E nem sempre as palavras em português que lembram mais o título original têm potencial para fazer esse quadrinho chamar atenção do público brasileiro.
Minha primeira tradução foi Blankets, de Craig Thompson. Minha proposta de tradução? Cobertos. Como saiu? Retalhos. Foi um sucesso de crítica e vendas no Brasil.
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2. Todo mundo fala como o Chico Bento, mas só o Chico Bento fala como o Chico Bento
Toda pessoa normal, falando cotidianamente, fala “errado”. Comemos letras, conjugamos mal, erramos concordâncias. O “e” vira “i”, o “ar” vira “a”, “vamos” vira “vamu”.
Mas, se o balão do seu personagem, uma pessoa normal, falando cotidianamente, tiver uma frase dessas, automaticamente ele vira o Chico Bento. E não era para seu personagem ser um simpático menino da roça.
Segundo a convenção, o que está no balão da HQ é a representação do som. O que sai da boca de quem fala. Ao mesmo tempo, aquela fala é texto escrito, para ser lido pelos seus olhos e seu cérebro. É som, mas você não está ouvindo. Se o tradutor só for fiel aos sons, vai criar um ruído no escrito que mais atrapalha do que colabora com a leitura.
Você, tradutor, pode usar gírias, coloquialismos. Até regionalismos, falou, parça? Principalmente se o original usar. Mas num mi vai botá mão pesada nas funética, naum.
Dá para usar uma escrita que se aproxima da transcrição fonética quando você quer usá-la para caracterização. Tem aquele personagem que come umas letras, tem aquela criança que não sabe usar os verbos, tem quem fala “para” e quem fala “pra”, quem fala “você” e quem fala “cê”. De vez em quando tem Chico Bentos. Má num ixagere, tá cerrrto?
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3. Quanto melhor o quadrinho, menos trabalho tem o tradutor
Os melhores quadrinhos são aqueles que integram imagem e texto com uma competência que faz a imagem narrar a história e o texto ser um coadjuvante que engrandece o conjunto. Nesses bons quadrinhos, mais da metade do serviço é cumprido pelas imagens – nas quais você, tradutor, não mexe. A sua função é fazer com que o jogo entre imagens e textos – nos textos, você mexe – funcione do jeito que tem que funcionar.
Mais: muitos quadrinhos excelentes usam e abusam de tipografia, recursos especiais nas letras de balões, nas onomatopeias, inscrições no cenário, logotipos. Tudo isso é expressão, é narrativa. O tradutor traduz esses textos… como textos. Quem fica com o trabalho pesado de traduzir esses textos como imagens é o letreirista: o profissional que manipula as letrinhas para se expressarem e se encaixarem tanto quanto no original. Agora, em outra língua.
E mais: os quadrinhos mais difíceis de traduzir são os quadrinhos ruins. Se você detestou ler, vai detestar traduzir. Se o quadrinho é bom, melhor você trabalha.
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4. Quase ninguém respeita direito autoral
Tradutores, segundo a lei brasileira (9610/98), são autores. É por isso que o nome de quem traduziu aparece obrigatoriamente na edição. Também significa que quem traduziu devia ter controle sobre o que sai com seu nome. Mas não é sempre que isso acontece.
Se você lê o quadrinho da pessoa X, você supõe que cada palavra naquele quadrinho foi escrita pela pessoa X ou foi fruto de uma conversa dela com os editores. Afinal, é o nome de X, o autor ou autora, que está nos créditos. A pessoa que traduziu raramente é chamada para conversar ou aprovar o texto final. É uma prática rara entre editores e editoras. Devia ser regra. É tanto direito quanto dever de quem traduz.
Mais: você supõe que, se está comprando um quadrinho de X, alguns reais do que você gastou vão chegar a X, não é? É o que se chama de royalties. Tradutores recebem royalties? Deviam, pois são autores. Com raras exceções, não recebem.
5. IA não ginga
Uma vez, tive que traduzir uma música das escoteiras cantada por uma menina com a língua presa. Mas a música era deturpada e ganhava conotações sexuais. Um trecho:
The cuteth boy
I ever thaw
Wath thipping thiiiiider…
Thoo a thtraw-aw-aw!
Era um miniiino
Tão punitchiiiinho
Chupava a chiiiiidra…
De canudshiiiiiiiinho!
É uma tradução em camadas. Você tem que sacar qual é a referência do original, decifrar o que a escoteira diz de fato, captar os duplos sentidos que a música precisa ter, achar uma referência melódica, escrever os duplo sentidos em português dentro dessa melodia, atentar a rimas e métrica e “deformar” a música conforme a língua presa. Tudo isso enquanto você encaixa essa música na cena, no tom do quadrinho e no tamanho do balão.
É bastante coisa. Tradutores desenvolvem uma… na falta de definição melhor, uma ginga para encontrar a saída de perrengues que nem esse: chegar em soluções bonitas e malandras que respeitem o original.
Inteligência artificial não tem ginga. Não tem mesmo. Você pode me dizer que ainda não tem, porque os modelos de linguagem estão em desenvolvimento, que eles vão “aprender”. Mas esses modelos, acredito eu, não estão evoluindo no sentido de gingar.
A IA reproduz e combina a partir da estatística. E, ok, a tradução, grosso modo, também é reprodução (de efeitos em outra língua). Tudo bem. Mas a boa literatura, o bom quadrinho, o bom texto em geral, tem essa ginga com a linguagem e os sentidos que não dá para definir e que nos dá o prazer da leitura. A IA lida com coisas que consegue definir.
Tem traduções que não dependem de ginga, nem são feitas para o prazer da leitura. Para essas, a IA é uma mão na roda. Mas o texto criativo, que cativa e que é novo, que encanta e que dói, que pode até revolucionar a língua, exige uma ginga que os robozinhos não têm.
6. Metade do meu trabalho é ler. A outra metade é escrever.
E todo dia eu me sinto um privilegiado por trabalhar lendo e levando o que eu leio a outros leitores e outras leitoras.





