A lição que Hollow Knight: Silksong e o financiamento coletivo deram à indústria de games

Em 21 de agosto de 2025, às 11h30 da manhã (horário de Brasília), um trailer de 1 minuto e 53 segundos publicado no YouTube encerrava uma espera sem precedentes na história contemporânea dos videogames. Nele, a desenvolvedora australiana Team Cherry anunciava que Hollow Knight: Silksong, sequência do aclamado metroidvania indie Hollow Knight, seria lançado em 4 de setembro, pouco mais de 6 anos e meio após o seu anúncio oficial, em 2019. Um intervalo que significou expectativas, dúvidas e memes por parte da comunidade, mas que agora sabemos, apenas representou um substantivo: resistência.

É a regra não dita: se um game anunciado, seja indie ou triple A, ficar anos sem atualizações constantes, provavelmente ele está passando pelo temido inferno de desenvolvimento, período no qual diferentes bloqueios impedem o avanço sustentável dos trabalhos. E quando isso acontece, dois podem ser os destinos mais prováveis: um jogo de má qualidade ou o cancelamento do projeto. Mas Silksong, mesmo com anos no mais absoluto silêncio, apenas estava seguindo o seu ritmo natural, como explicaram Ari Gibson e William Pellen, co-fundadores da Team Cherry, em entrevista à Bloomberg, publicada logo após o anúncio da data de lançamento. No papo, Gibson destacou:


Nunca houve um impasse nem nada. Estávamos sempre progredindo. Acontece que somos um time pequeno e os jogos levam muito tempo [para serem desenvolvidos]. Não houve nenhum momento controverso por trás disso.

É assim que o jogo roda - infelizmente

Hoje, não apenas os games demoram mais para serem desenvolvidos, como custam mais caro (cerca de 6% ao ano entre 2017 e 2022, com previsão de 8% ao ano até 2028, de acordo com a empresa de consultoria BCG), também pressionados por perspectivas de receitas irrealistas, consequência da “cooptação” do mercado de games pelo mercado financeiro. Com crescimento anual de 13% entre 2017 e 2021 - impulsionados em parte pela pandemia da Covid-19 - a indústria de jogos digitais se transformou em um interessante ativo para o mercado especulativo. A consequência foi acionistas exigindo retornos exponenciais em um setor que não seguiu o mesmo ritmo nos últimos anos, como destaca a própria BCG em seu relatório. E o resultado disso tudo?
🎮 Demissões em massa.
🎮 Fechamento de estúdios premiados.
🎮 Jogos como serviços flopados.
🎮 Games e consoles mais caros.

Tudo para que o cheque no final de ano seja mais “recheado” para um pequeno grupo de pessoas. 

Análise da Boston Consulting Group (BCG) sobre o crescimento do mercado de games desde 2017.

A exceção que comprova a regra

Hollow Knight, predecessor de Silksong, foi lançado em fevereiro de 2017, sendo o segundo jogo da Team Cherry - que estreou no mercado com o desconhecido Hungry Knight, a gênese espiritual do universo de HK, lançado apenas para PC. Mas o que quase ninguém lembra, e que faz toda a diferença para a história aqui contada, é que Hollow Knight ganhou vida a partir de sua campanha de financiamento coletivo no Kickstarter, lançada em 18 de novembro de 2014. Um projeto modesto para o histórico da plataforma, que arrecadou pouco mais de 57 mil dólares australianos (cerca de R$260 mil, corrigido pela inflação), com o suporte de 2.158 pessoas. 

Página da campanha de Hollow Knight no Kickstarter

Isso permitiu que o game não apenas se viabilizasse frente ao trabalho central de Gibson, Pellen e mais um desenvolvedor, como também que todo o processo fosse feito de maneira 100% independente - sem a assistência de publishers ou capital privado de investidores. Um game condicionado apenas pela liberdade criativa de seus criadores, validada pela ajuda de 2.158 jogadores, todos na expectativa de terem acesso a um bom videogame. E quando Hollow Knight se torna um dos games indie mais celebrados da história, com mais de 15 milhões de cópias vendidas, fica fácil entender o ponto fora da curva que foi o desenvolvimento de Silksong - que, inclusive, nasceu como ideia de uma DLC para Hollow Knight, destravada aos apoiadores a partir de meta estendida. 

Sem pressão de investidores, limitação criativa imposta por terceiros e acesso a um budget considerável - gerado pelo sucesso de HK -, o aguardado game da Team Cherry pôde ser feito no seu tempo, da maneira como os seus criadores sempre trabalharam, sem amarras. E se isso já não fosse o suficiente para celebração, o seu lançamento foi pró-consumidor, ao fixar o preço base de US$20 para cópias digitais (menos de um terço do valor base praticado pelo mercado), também localizando o preço para cada país frente às suas particularidades econômicas. No Brasil, por exemplo, o jogo pode ser comprado nas principais plataformas por R$59,90 (eShop, Steam) ou R$74,95 (Xbox). A única exceção é na PS Store, que a partir de uma política própria de conversão do câmbio, precificou o jogo em R$114,90… 

Livre para cobrar qualquer valor, frente à grande espera do público, a Team Cherry precificou Silksong até mesmo abaixo do valor médio cobrado hoje para games indie

O que acontece agora?

Por anos, Hollow Knight: Silksong foi o jogo mais esperado da história recente dos games. Calcula-se que mais de 5 milhões de cópias já foram vendidas, com mais de 500 mil jogadores simultâneos nos primeiros dias do lançamento na Steam. Assim, mais uma longa expectativa baseada em frames e pixels chegou ao fim - até que um próximo título ganhe tal importância. E o que sobra dessa jornada? Força para continuarmos trabalhando em soluções sustentáveis ao desenvolvimento de videogames. Sem pressa, limitações, exigências… 

E aqui no Catarse, também temos exemplos que mostram como o financiamento coletivo é um aliado na produção independente de videogames, com destaque para títulos como Tormenta: O Desafio dos Deuses (Black Hole Games), 99Vidas (99Vidas & QUByte), A Lenda do Herói (Castro Brothers) e Ordem Paranormal: Enigma do Medo (Dumativa Game Studio & Ordem Paranormal) - este sendo um dos jogos mais vendidos da Steam em seu lançamento.

E assim a indústria independente segue, mesmo com todos os obstáculos, na tentativa de trazer ao mundo games que são divertidos para quem joga, mas principalmente, para quem cria. 

Que assim seja.

PS: uma das principais vozes sobre os problemas enfrentados pela indústria dos games hoje é o jornalista Pedro Henrique Lutti Lippe, que vem analisando esse cenário através de vídeos publicados em seu canal no YouTube, e inspirou a produção desse texto. Assim, além da sugestão de acompanhá-lo por lá, também fica a dica de apoiá-lo em sua campanha recorrente no Catarse, O X do Controle, capitaneado ao lado do jornalista Guilherme Dias.

Leandro Saioneti
Jornalista especializado em Mídia Cultural, sonhava em ter uma banca de jornal quando criança. Trocou o desejo do impresso para compartilhar cultura na internet.

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É a regra não dita: se um game anunciado, seja indie ou triple A, ficar anos sem atualizações constantes, provavelmente ele está passando pelo temido inferno de desenvolvimento, período no qual diferentes bloqueios impedem o avanço sustentável dos trabalhos. E quando isso acontece, dois podem ser os destinos mais prováveis: um jogo de má qualidade ou o cancelamento do projeto. Mas Silksong, mesmo com anos no mais absoluto silêncio, apenas estava seguindo o seu ritmo natural, como explicaram Ari Gibson e William Pellen, co-fundadores da Team Cherry, em entrevista à Bloomberg, publicada logo após o anúncio da data de lançamento. No papo, Gibson destacou:


Nunca houve um impasse nem nada. Estávamos sempre progredindo. Acontece que somos um time pequeno e os jogos levam muito tempo [para serem desenvolvidos]. Não houve nenhum momento controverso por trás disso.

É assim que o jogo roda - infelizmente

Hoje, não apenas os games demoram mais para serem desenvolvidos, como custam mais caro (cerca de 6% ao ano entre 2017 e 2022, com previsão de 8% ao ano até 2028, de acordo com a empresa de consultoria BCG), também pressionados por perspectivas de receitas irrealistas, consequência da “cooptação” do mercado de games pelo mercado financeiro. Com crescimento anual de 13% entre 2017 e 2021 - impulsionados em parte pela pandemia da Covid-19 - a indústria de jogos digitais se transformou em um interessante ativo para o mercado especulativo. A consequência foi acionistas exigindo retornos exponenciais em um setor que não seguiu o mesmo ritmo nos últimos anos, como destaca a própria BCG em seu relatório. E o resultado disso tudo?
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🎮 Jogos como serviços flopados.
🎮 Games e consoles mais caros.

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Análise da Boston Consulting Group (BCG) sobre o crescimento do mercado de games desde 2017.

A exceção que comprova a regra

Hollow Knight, predecessor de Silksong, foi lançado em fevereiro de 2017, sendo o segundo jogo da Team Cherry - que estreou no mercado com o desconhecido Hungry Knight, a gênese espiritual do universo de HK, lançado apenas para PC. Mas o que quase ninguém lembra, e que faz toda a diferença para a história aqui contada, é que Hollow Knight ganhou vida a partir de sua campanha de financiamento coletivo no Kickstarter, lançada em 18 de novembro de 2014. Um projeto modesto para o histórico da plataforma, que arrecadou pouco mais de 57 mil dólares australianos (cerca de R$260 mil, corrigido pela inflação), com o suporte de 2.158 pessoas. 

Página da campanha de Hollow Knight no Kickstarter

Isso permitiu que o game não apenas se viabilizasse frente ao trabalho central de Gibson, Pellen e mais um desenvolvedor, como também que todo o processo fosse feito de maneira 100% independente - sem a assistência de publishers ou capital privado de investidores. Um game condicionado apenas pela liberdade criativa de seus criadores, validada pela ajuda de 2.158 jogadores, todos na expectativa de terem acesso a um bom videogame. E quando Hollow Knight se torna um dos games indie mais celebrados da história, com mais de 15 milhões de cópias vendidas, fica fácil entender o ponto fora da curva que foi o desenvolvimento de Silksong - que, inclusive, nasceu como ideia de uma DLC para Hollow Knight, destravada aos apoiadores a partir de meta estendida. 

Sem pressão de investidores, limitação criativa imposta por terceiros e acesso a um budget considerável - gerado pelo sucesso de HK -, o aguardado game da Team Cherry pôde ser feito no seu tempo, da maneira como os seus criadores sempre trabalharam, sem amarras. E se isso já não fosse o suficiente para celebração, o seu lançamento foi pró-consumidor, ao fixar o preço base de US$20 para cópias digitais (menos de um terço do valor base praticado pelo mercado), também localizando o preço para cada país frente às suas particularidades econômicas. No Brasil, por exemplo, o jogo pode ser comprado nas principais plataformas por R$59,90 (eShop, Steam) ou R$74,95 (Xbox). A única exceção é na PS Store, que a partir de uma política própria de conversão do câmbio, precificou o jogo em R$114,90… 

Livre para cobrar qualquer valor, frente à grande espera do público, a Team Cherry precificou Silksong até mesmo abaixo do valor médio cobrado hoje para games indie

O que acontece agora?

Por anos, Hollow Knight: Silksong foi o jogo mais esperado da história recente dos games. Calcula-se que mais de 5 milhões de cópias já foram vendidas, com mais de 500 mil jogadores simultâneos nos primeiros dias do lançamento na Steam. Assim, mais uma longa expectativa baseada em frames e pixels chegou ao fim - até que um próximo título ganhe tal importância. E o que sobra dessa jornada? Força para continuarmos trabalhando em soluções sustentáveis ao desenvolvimento de videogames. Sem pressa, limitações, exigências… 

E aqui no Catarse, também temos exemplos que mostram como o financiamento coletivo é um aliado na produção independente de videogames, com destaque para títulos como Tormenta: O Desafio dos Deuses (Black Hole Games), 99Vidas (99Vidas & QUByte), A Lenda do Herói (Castro Brothers) e Ordem Paranormal: Enigma do Medo (Dumativa Game Studio & Ordem Paranormal) - este sendo um dos jogos mais vendidos da Steam em seu lançamento.

E assim a indústria independente segue, mesmo com todos os obstáculos, na tentativa de trazer ao mundo games que são divertidos para quem joga, mas principalmente, para quem cria. 

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PS: uma das principais vozes sobre os problemas enfrentados pela indústria dos games hoje é o jornalista Pedro Henrique Lutti Lippe, que vem analisando esse cenário através de vídeos publicados em seu canal no YouTube, e inspirou a produção desse texto. Assim, além da sugestão de acompanhá-lo por lá, também fica a dica de apoiá-lo em sua campanha recorrente no Catarse, O X do Controle, capitaneado ao lado do jornalista Guilherme Dias.

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