O legado de Frankenstein

Você já imaginou criar algo a partir de fragmentos desconexos? Selecionar uma parte, de memória, voz, imagem, código, ir reunindo materiais que, no fim, darão origem a algo novo, ou essa ideia te assombra? Na era das máquinas que aprendem, dos algoritmos, e das imagens que se geram sozinhas a partir de um prompt, é quase impossível não sentir o medo de ver a criação escapar das mãos do criador. 

Muito antes de vivermos rodeados por tecnologias que imitam gestos humanos, Mary Shelley já havia imaginado o que seria dar forma a uma criatura feita de partes, movida por uma centelha de vida e pela ambição de quem a construiu. Em 1818, ela escreveu Frankenstein e, sem saber, antecipou dilemas que continuam a nos perseguir. Acredita que dois séculos depois, a criatura de Mary Shelley ainda está viva? Sim, nas histórias que contamos, nas tecnologias que criamos, nas perguntas que insistem em voltar. Que tal revisitar esse legado e descobrir por que ele ainda nos persegue?

As partes que moldaram Mary Shelley

Filha de William Godwin – filósofo e ativista político – e de Mary Wollstonecraft – escritora e defensora dos direitos das mulheres –, Mary Shelley cresceu em um lar onde ideias sobre ética, liberdade e direitos humanos circulavam naturalmente. Sua mãe faleceu poucos dias após seu nascimento, e a responsabilidade por sua criação ficou com o pai, que se considerava inábil para cuidar de uma criança, imerso em seu próprio luto e nos interesses de filosofia e política. Esse distanciamento, combinado aos rígidos padrões educacionais da época, forjou uma educação exigente e intelectual, moldando Mary em uma jovem curiosa, acostumada a questionar normas e provocar debates sobre o mundo e suas possibilidades. Não há como negar que essas experiências pessoais a moldaram – e até mesmo a traumatizaram.

Outro ponto intrinsecamente conectado à sua vida é o contexto social, político e cultural. Pouco antes de seu nascimento, a independência dos Estados Unidos e, logo depois, a do Haiti mostraram que ideias de liberdade e direitos humanos podiam se tornar realidade. Durante a infância, Mary esteve presente em ambientes onde ideais antiautoritários eram discutidos em cafés e círculos filosóficos europeus. Nesse cenário, testemunhou demonstrações científicas que exploravam vida e morte, eletricidade e experiências com cadáveres, capazes de fascinar e assustar tanto o público presente quanto os leitores dos tabloides jornalísticos. Na adolescência, passou a frequentar um círculo de jovens intelectuais e filósofos, onde conheceu o excêntrico Percy Shelley, poeta e pensador que compartilhava sua curiosidade e espírito crítico, e que se tornaria companheiro de vida e parceiro intelectual, cruzando com ela experiências, ideias e ideais que marcariam profundamente sua escrita.

É justamente a partir de todas essas influências que Mary Shelley escreve Frankenstein. A criatura do livro, assim como a autora, surge em um mundo em que precisa aprender tudo sozinha, sem afeto e cuidado. Victor Frankenstein reflete figuras de autoridade – ou seja, seu pai, Godwin – e expectativas externas enquanto a própria criatura incorpora medos, perdas e desafios de quem precisa se formar diante de um mundo que não oferece respostas fáceis e, às vezes, até o despreza. Mais do que uma história de horror ou ciência, Frankenstein é visto por muitos críticos como uma autobiografia, que, junto a elementos literários da ficção científica, antecipa dilemas universais: a ética de criar, os limites do conhecimento e o espelho inquietante de se reconhecer no que se produz.

SAIBA MAIS: Por que somos tão fascinados por histórias de horror?

As partes que nos fazem refletir

No coração de Frankenstein estão perguntas que atravessam séculos: que limites a ambição deve respeitar? E se aquilo que criamos se voltar contra nós, mesmo quando acreditávamos poder controlá-lo? Essas inquietações, que nasceram da experiência pessoal e das reflexões de uma jovem imersa em debates filosóficos, éticos e científicos, fizeram de Frankenstein um modelo para pensar a tensão entre criação e criador, poder e consequência, ambição e responsabilidade.

Essas perguntas também nasceram de um tempo em crise. O ideal iluminista – que apostava na razão, na ciência e no progresso como caminhos para a liberdade – revelava, aos poucos, suas sombras. A promessa de um mundo mais justo e racional se via manchada por novas formas de desigualdade, violência e miséria. Diante desse cenário, Shelley parecia se perguntar: de onde vem o erro? Por que o projeto que deveria nos libertar começa a nos destruir? De onde surgem os monstros quando já não há mais tiranos visíveis para culpar?

Entre as linhas do romance, essas questões ganham corpo. Victor Frankenstein busca criar a vida perfeita, mas gera o desamparo. A criatura, rejeitada e solitária, aprende a odiar porque deseja ser amada. E Shelley, que perdeu três filhos ainda pequenos e viveu entre ausências e distâncias afetivas, transforma essa dor em pensamento, palavra e uma narrativa.

Mais de dois séculos depois, seguimos cercados por novas formas de criação – inteligências artificiais, biotecnologias, algoritmos que moldam realidades – e acrescentamos outras perguntas: o que criamos, afinal, diz mais sobre o mundo ou sobre nós? Ler Frankenstein hoje é reconhecer que ainda estamos tentando responder.

RECOMENDAÇÃO DE LEITURA: Horror, terror e folk horror: qual a diferença?

As partes de Frankenstein ao longo dos anos

Se hoje quisermos revisitar Frankenstein sob essa luz – entre a criação e o medo, a solidão e o desejo de ser compreendido – há muitas formas. Até porque a história de Victor Frankenstein e de sua criatura já foi levada ao teatro, aos jogos, inspirou letras de música, videoclipes, a moda, fantasias, brinquedos, romances, filmes e continua ecoando no imaginário coletivo. Inclusive, este ano, não se fala de outra coisa senão a aguardada adaptação de Guillermo del Toro, que chegará tanto aos cinemas este mês quanto à Netflix em novembro.

E se a sua vontade for de ler o romance, entre as inúmeras edições brasileiras há duas com campanhas abertas aqui no Catarse que merecem atenção.

A da Wish, traduzida por Carlos Primati e ilustrada por Caroline Murta, apresenta a versão de 1831, aquela em que Mary Shelley, já mais madura e consciente do alcance do que havia criado, revisa o texto e o transforma em seu legado definitivo. Essa edição se destaca também pelo cuidado editorial, repletas de notas de rodapé que contextualizam as referências literárias, históricas e científicas da época, e uma composição gráfica que aproxima o leitor da atmosfera sombria e poética da narrativa.

Já a edição da O Grifo, em parceria com a Mão Esquerda, volta à origem, ao manuscrito original de 1816-1817, anterior às interferências de Percy Shelley. É a primeira tradução desse texto em português, conduzida por L. F. Lunardello, e traz de volta a voz mais bruta e instintiva de Mary, com notas e ensaios que revelam seu olhar feminista e sua crítica à ambição masculina de “criar a vida”. Além disso, o volume inclui comentários inéditos da própria autora, recuperados de um exemplar anotado à mão por ela – uma espécie de mapa íntimo do que Shelley realmente quis dizer.

Duas leituras que, cada uma à sua maneira, permitem encontrar novas formas de ler uma mesma criação. Viu como a criatura segue viva? Afinal, no fundo, Frankenstein nunca foi só sobre monstros, mas sobretudo o que a humanidade insiste em criar para tentar entender a si mesma. E aí, você está pronto para descobrir o que esse clássico pode revelar sobre você?

Lorena Camilo
Mestra em Estudos Literários na área de pesquisa Literaturas Modernas e Contemporâneas; e bacharel em Letras em duas ênfases, Estudos sobre Edição com formação complementar em Comunicação Social e em Estudos Literários pela UFMG. É editora, revisora e redatora, além de aficionada por arte e cultura pop.

Talvez você se interesse...

O legado de Frankenstein

Você já imaginou criar algo a partir de fragmentos desconexos? Selecionar uma parte, de memória, voz, imagem, código, ir reunindo materiais que, no fim, darão origem a algo novo, ou essa ideia te assombra? Na era das máquinas que aprendem, dos algoritmos, e das imagens que se geram sozinhas a partir de um prompt, é quase impossível não sentir o medo de ver a criação escapar das mãos do criador. 

Muito antes de vivermos rodeados por tecnologias que imitam gestos humanos, Mary Shelley já havia imaginado o que seria dar forma a uma criatura feita de partes, movida por uma centelha de vida e pela ambição de quem a construiu. Em 1818, ela escreveu Frankenstein e, sem saber, antecipou dilemas que continuam a nos perseguir. Acredita que dois séculos depois, a criatura de Mary Shelley ainda está viva? Sim, nas histórias que contamos, nas tecnologias que criamos, nas perguntas que insistem em voltar. Que tal revisitar esse legado e descobrir por que ele ainda nos persegue?

As partes que moldaram Mary Shelley

Filha de William Godwin – filósofo e ativista político – e de Mary Wollstonecraft – escritora e defensora dos direitos das mulheres –, Mary Shelley cresceu em um lar onde ideias sobre ética, liberdade e direitos humanos circulavam naturalmente. Sua mãe faleceu poucos dias após seu nascimento, e a responsabilidade por sua criação ficou com o pai, que se considerava inábil para cuidar de uma criança, imerso em seu próprio luto e nos interesses de filosofia e política. Esse distanciamento, combinado aos rígidos padrões educacionais da época, forjou uma educação exigente e intelectual, moldando Mary em uma jovem curiosa, acostumada a questionar normas e provocar debates sobre o mundo e suas possibilidades. Não há como negar que essas experiências pessoais a moldaram – e até mesmo a traumatizaram.

Outro ponto intrinsecamente conectado à sua vida é o contexto social, político e cultural. Pouco antes de seu nascimento, a independência dos Estados Unidos e, logo depois, a do Haiti mostraram que ideias de liberdade e direitos humanos podiam se tornar realidade. Durante a infância, Mary esteve presente em ambientes onde ideais antiautoritários eram discutidos em cafés e círculos filosóficos europeus. Nesse cenário, testemunhou demonstrações científicas que exploravam vida e morte, eletricidade e experiências com cadáveres, capazes de fascinar e assustar tanto o público presente quanto os leitores dos tabloides jornalísticos. Na adolescência, passou a frequentar um círculo de jovens intelectuais e filósofos, onde conheceu o excêntrico Percy Shelley, poeta e pensador que compartilhava sua curiosidade e espírito crítico, e que se tornaria companheiro de vida e parceiro intelectual, cruzando com ela experiências, ideias e ideais que marcariam profundamente sua escrita.

É justamente a partir de todas essas influências que Mary Shelley escreve Frankenstein. A criatura do livro, assim como a autora, surge em um mundo em que precisa aprender tudo sozinha, sem afeto e cuidado. Victor Frankenstein reflete figuras de autoridade – ou seja, seu pai, Godwin – e expectativas externas enquanto a própria criatura incorpora medos, perdas e desafios de quem precisa se formar diante de um mundo que não oferece respostas fáceis e, às vezes, até o despreza. Mais do que uma história de horror ou ciência, Frankenstein é visto por muitos críticos como uma autobiografia, que, junto a elementos literários da ficção científica, antecipa dilemas universais: a ética de criar, os limites do conhecimento e o espelho inquietante de se reconhecer no que se produz.

SAIBA MAIS: Por que somos tão fascinados por histórias de horror?

As partes que nos fazem refletir

No coração de Frankenstein estão perguntas que atravessam séculos: que limites a ambição deve respeitar? E se aquilo que criamos se voltar contra nós, mesmo quando acreditávamos poder controlá-lo? Essas inquietações, que nasceram da experiência pessoal e das reflexões de uma jovem imersa em debates filosóficos, éticos e científicos, fizeram de Frankenstein um modelo para pensar a tensão entre criação e criador, poder e consequência, ambição e responsabilidade.

Essas perguntas também nasceram de um tempo em crise. O ideal iluminista – que apostava na razão, na ciência e no progresso como caminhos para a liberdade – revelava, aos poucos, suas sombras. A promessa de um mundo mais justo e racional se via manchada por novas formas de desigualdade, violência e miséria. Diante desse cenário, Shelley parecia se perguntar: de onde vem o erro? Por que o projeto que deveria nos libertar começa a nos destruir? De onde surgem os monstros quando já não há mais tiranos visíveis para culpar?

Entre as linhas do romance, essas questões ganham corpo. Victor Frankenstein busca criar a vida perfeita, mas gera o desamparo. A criatura, rejeitada e solitária, aprende a odiar porque deseja ser amada. E Shelley, que perdeu três filhos ainda pequenos e viveu entre ausências e distâncias afetivas, transforma essa dor em pensamento, palavra e uma narrativa.

Mais de dois séculos depois, seguimos cercados por novas formas de criação – inteligências artificiais, biotecnologias, algoritmos que moldam realidades – e acrescentamos outras perguntas: o que criamos, afinal, diz mais sobre o mundo ou sobre nós? Ler Frankenstein hoje é reconhecer que ainda estamos tentando responder.

RECOMENDAÇÃO DE LEITURA: Horror, terror e folk horror: qual a diferença?

As partes de Frankenstein ao longo dos anos

Se hoje quisermos revisitar Frankenstein sob essa luz – entre a criação e o medo, a solidão e o desejo de ser compreendido – há muitas formas. Até porque a história de Victor Frankenstein e de sua criatura já foi levada ao teatro, aos jogos, inspirou letras de música, videoclipes, a moda, fantasias, brinquedos, romances, filmes e continua ecoando no imaginário coletivo. Inclusive, este ano, não se fala de outra coisa senão a aguardada adaptação de Guillermo del Toro, que chegará tanto aos cinemas este mês quanto à Netflix em novembro.

E se a sua vontade for de ler o romance, entre as inúmeras edições brasileiras há duas com campanhas abertas aqui no Catarse que merecem atenção.

A da Wish, traduzida por Carlos Primati e ilustrada por Caroline Murta, apresenta a versão de 1831, aquela em que Mary Shelley, já mais madura e consciente do alcance do que havia criado, revisa o texto e o transforma em seu legado definitivo. Essa edição se destaca também pelo cuidado editorial, repletas de notas de rodapé que contextualizam as referências literárias, históricas e científicas da época, e uma composição gráfica que aproxima o leitor da atmosfera sombria e poética da narrativa.

Já a edição da O Grifo, em parceria com a Mão Esquerda, volta à origem, ao manuscrito original de 1816-1817, anterior às interferências de Percy Shelley. É a primeira tradução desse texto em português, conduzida por L. F. Lunardello, e traz de volta a voz mais bruta e instintiva de Mary, com notas e ensaios que revelam seu olhar feminista e sua crítica à ambição masculina de “criar a vida”. Além disso, o volume inclui comentários inéditos da própria autora, recuperados de um exemplar anotado à mão por ela – uma espécie de mapa íntimo do que Shelley realmente quis dizer.

Duas leituras que, cada uma à sua maneira, permitem encontrar novas formas de ler uma mesma criação. Viu como a criatura segue viva? Afinal, no fundo, Frankenstein nunca foi só sobre monstros, mas sobretudo o que a humanidade insiste em criar para tentar entender a si mesma. E aí, você está pronto para descobrir o que esse clássico pode revelar sobre você?

Sobre quem falamos nessa história

No items found.

Sobre quem falamos nessa história

No items found.
10 anos de histórias
Conheça outras histórias >
No items found.

Traga seu projeto criativo ao mundo!

Comece seu projeto