A leitura como forma de expandir horizontes

Em 2018 eu li um texto do tradutor do livro Lá não existe lá de Tommy Orange, Osmar Tirelli, que dizia algo mais ou menos assim “esse livro foi uma oportunidade de viver na pele de alguém que era completamente diferente de mim”. Eu sempre lembro disso porque Lá não existe lá foi o primeiro livro que falava sobre mim. Ler o outro – pessoas brancas e héteros, principalmente homens – sempre foi o de praxe, o esperado. Mas com 30 anos de idade eu me vi em um livro pela primeira vez. O poder disso é imensurável.

Mas existe uma magia incrível em entrar em um livro e vivenciar um ponto de vista completamente novo. Como disse G.R.R. Martin “Um leitor vive mil vidas antes de morrer, aquele que nunca lê vive apenas uma.” Ler o outro, não apenas sobre o outro, mas através do olhar do outro, nos possibilita uma vivência além da nossa individualidade, dos nossos contextos. Não que o papel da literatura seja esse, mas acredito que podemos considerar um bônus entrar em uma história e sair dela com uma nova visão do mundo. Um mundo mais rico, menos preto e branco.

A necessidade de expandirmos nossos horizontes não é apenas uma ideia de inclusão por inclusão. É algo fundamental para a nossa humanidade. A empatia – palavra que foi usada com demasia até perder o sentido – é parte essencial se quisermos um futuro mais justo, focado no bem coletivo e não apenas individual. Até porque, um futuro apenas individual é um futuro que vai acabar bem rápido. 

SAIBA MAIS: Do TikTok para as estantes: como o bookTok está transformando o mercado literário

Infelizmente, para encontrar essas histórias, que nos proporcionam vivências diferentes, precisamos fazer uma busca ativa. Elas não vão estar nas vitrines de livrarias ou no banner mais chamativo do seu e-commerce favorito para comprar livros. Talvez você até conheça e tenha lido Torto Arado, Ideias para adiar o fim do mundo, Um defeito de cor ou O avesso da pele. Mas e além disso? Você consegue nomear outros autores indígenas que tenha lido nos últimos seis meses? E autores do norte? E uma ficção especulativa do nordeste? Ou um poeta trans do centro-oeste?

Essas recomendações estão na ponta da língua de algum livreiro, de certos produtores de conteúdo que ainda se preocupam com a literatura como forma de transformação social e também em alguns clubes de leitura. São espaços criados para que possamos fazer trocas, sair das nossas zonas de conforto e ampliar nossas fronteiras.

LEIA TAMBÉM: A importância dos influenciadores para o mercado editorial

Clubes de leitura não só nos apresentam uma curadoria bem pensada, mas a possibilidade de discutir com outras pessoas a interpretação individual de cada texto. Num mundo em que cada vez mais as mídias precisam ser mastigadas, que os finais precisam ser “explicados”; o movimento de confiar na sua própria interpretação e não se preocupar qual é a maneira “certa” de se entender um livro, é um exercício magnífico. E dividir o seu ponto de vista e discuti-lo de forma construtiva com o outro é uma das formas mais interessantes de se interagir com a literatura. Afinal, o livro é arte que começa no autor, mas termina no leitor.

Um dos clubes que sou muito fã é o Raizes do Horror, mediado pela Dayhara Martins. A proposta é apresentar o horror trazendo debates sobre raça, gênero e classe.  A “literatura de gênero” continua não tendo o merecido apreço pela Academia ou nos prêmios literários, mesmo sendo uma das ferramentas que discute pautas sociais de forma mais interessante e complexa. Vemos uma demonstração disso nos filmes de Jordan Peele, que mesmo sendo um sucesso de crítica conquistou apenas uma estatueta nos Oscars (Em 90 anos de prêmio, Get Out foi o 6º filme de horror a receber uma indicação de melhor filme). O convite que a Dayhara faz é de olharmos todo o potencial transformador da ficção especulativa, não apenas para expôr tormentos reais e fantásticos, mas para trazer humanidade às pessoas marginalizadas. 

Outro clube mais recente que tem uma proposta essencial para mudarmos nossos olhares é o Notas Transversas, mediado pela Gabriele Santuzzo. O objetivo é a leitura de autoria trans e travesti. Esse projeto me fez repensar não só na quantidade de autores trans que li ao longo da vida, mas também no pouco espaço que essas pessoas tem dentro do mercado editorial. Porque o que lemos também determina aquilo que o mercado nos oferece. Gabriele, ao nos convidar à essas leituras, também sinaliza para o mercado editorial a importância dessas narrativas.

SAIBA MAIS: Entre silêncios e prateleiras vazias: o que faz um livro desaparecer?

Eu poderia indicar muitos outros, mas vou deixar uma última recomendação, o clube Leituras Decoloniais mediado pelas irmãs Pétala e Isa Souza, Maria Ferreira e Camila Dias, quatro mulheres negras que há anos discutem literatura com o recorte de raça na internet. As discussões são feitas com uma profunda imersão nos temas dos livros escolhidos, agregando outras leituras e materiais complementares que tem o objetivo de apresentar contextos e epistemologias decoloniais pra quem participa. É realmente um trabalho impecável onde a ideia não é ter a palavra final e sim questionar aquilo que a colonização nos ensinou.

Quando digo que a procura dessas histórias precisa ser ativa, não é um exagero. Livros bestsellers de autores marginalizados são a exceção, não a regra. Para cada livro de um Jefferson Tenório que faz sucesso, existem mais vinte Dan Browns na lista de mais vendidos. 

A literatura existe para nos encantar, nos divertir, nos fazer pensar e pode ser uma maravilhosa ferramenta de transformação social. O livro pode ser o espaço de conhecer o outro ou de conhecermos a nós mesmos. Uma história poderosa pode nos entregar os tijolos que precisamos para construirmos novos mundos. É realmente mágico o que um livro pode fazer. Então se quisermos fazer parte disso, cabe a nós encontrarmos esses livros. Mas não precisamos fazer isso sozinhos.

Mayra Sigwalt
Mayra é descendente do povo kaingang, formada como roteirista de cinema, escritora, palestrante e produtora de conteúdo. Trabalha há 10 anos falando sobre literatura na internet e em 2025 publicou “Não quero ser índio” e "O roubo da cuia". Mayra escreve histórias para que outros como ela possam se ver na literatura.

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A leitura como forma de expandir horizontes

Em 2018 eu li um texto do tradutor do livro Lá não existe lá de Tommy Orange, Osmar Tirelli, que dizia algo mais ou menos assim “esse livro foi uma oportunidade de viver na pele de alguém que era completamente diferente de mim”. Eu sempre lembro disso porque Lá não existe lá foi o primeiro livro que falava sobre mim. Ler o outro – pessoas brancas e héteros, principalmente homens – sempre foi o de praxe, o esperado. Mas com 30 anos de idade eu me vi em um livro pela primeira vez. O poder disso é imensurável.

Mas existe uma magia incrível em entrar em um livro e vivenciar um ponto de vista completamente novo. Como disse G.R.R. Martin “Um leitor vive mil vidas antes de morrer, aquele que nunca lê vive apenas uma.” Ler o outro, não apenas sobre o outro, mas através do olhar do outro, nos possibilita uma vivência além da nossa individualidade, dos nossos contextos. Não que o papel da literatura seja esse, mas acredito que podemos considerar um bônus entrar em uma história e sair dela com uma nova visão do mundo. Um mundo mais rico, menos preto e branco.

A necessidade de expandirmos nossos horizontes não é apenas uma ideia de inclusão por inclusão. É algo fundamental para a nossa humanidade. A empatia – palavra que foi usada com demasia até perder o sentido – é parte essencial se quisermos um futuro mais justo, focado no bem coletivo e não apenas individual. Até porque, um futuro apenas individual é um futuro que vai acabar bem rápido. 

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Infelizmente, para encontrar essas histórias, que nos proporcionam vivências diferentes, precisamos fazer uma busca ativa. Elas não vão estar nas vitrines de livrarias ou no banner mais chamativo do seu e-commerce favorito para comprar livros. Talvez você até conheça e tenha lido Torto Arado, Ideias para adiar o fim do mundo, Um defeito de cor ou O avesso da pele. Mas e além disso? Você consegue nomear outros autores indígenas que tenha lido nos últimos seis meses? E autores do norte? E uma ficção especulativa do nordeste? Ou um poeta trans do centro-oeste?

Essas recomendações estão na ponta da língua de algum livreiro, de certos produtores de conteúdo que ainda se preocupam com a literatura como forma de transformação social e também em alguns clubes de leitura. São espaços criados para que possamos fazer trocas, sair das nossas zonas de conforto e ampliar nossas fronteiras.

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Clubes de leitura não só nos apresentam uma curadoria bem pensada, mas a possibilidade de discutir com outras pessoas a interpretação individual de cada texto. Num mundo em que cada vez mais as mídias precisam ser mastigadas, que os finais precisam ser “explicados”; o movimento de confiar na sua própria interpretação e não se preocupar qual é a maneira “certa” de se entender um livro, é um exercício magnífico. E dividir o seu ponto de vista e discuti-lo de forma construtiva com o outro é uma das formas mais interessantes de se interagir com a literatura. Afinal, o livro é arte que começa no autor, mas termina no leitor.

Um dos clubes que sou muito fã é o Raizes do Horror, mediado pela Dayhara Martins. A proposta é apresentar o horror trazendo debates sobre raça, gênero e classe.  A “literatura de gênero” continua não tendo o merecido apreço pela Academia ou nos prêmios literários, mesmo sendo uma das ferramentas que discute pautas sociais de forma mais interessante e complexa. Vemos uma demonstração disso nos filmes de Jordan Peele, que mesmo sendo um sucesso de crítica conquistou apenas uma estatueta nos Oscars (Em 90 anos de prêmio, Get Out foi o 6º filme de horror a receber uma indicação de melhor filme). O convite que a Dayhara faz é de olharmos todo o potencial transformador da ficção especulativa, não apenas para expôr tormentos reais e fantásticos, mas para trazer humanidade às pessoas marginalizadas. 

Outro clube mais recente que tem uma proposta essencial para mudarmos nossos olhares é o Notas Transversas, mediado pela Gabriele Santuzzo. O objetivo é a leitura de autoria trans e travesti. Esse projeto me fez repensar não só na quantidade de autores trans que li ao longo da vida, mas também no pouco espaço que essas pessoas tem dentro do mercado editorial. Porque o que lemos também determina aquilo que o mercado nos oferece. Gabriele, ao nos convidar à essas leituras, também sinaliza para o mercado editorial a importância dessas narrativas.

SAIBA MAIS: Entre silêncios e prateleiras vazias: o que faz um livro desaparecer?

Eu poderia indicar muitos outros, mas vou deixar uma última recomendação, o clube Leituras Decoloniais mediado pelas irmãs Pétala e Isa Souza, Maria Ferreira e Camila Dias, quatro mulheres negras que há anos discutem literatura com o recorte de raça na internet. As discussões são feitas com uma profunda imersão nos temas dos livros escolhidos, agregando outras leituras e materiais complementares que tem o objetivo de apresentar contextos e epistemologias decoloniais pra quem participa. É realmente um trabalho impecável onde a ideia não é ter a palavra final e sim questionar aquilo que a colonização nos ensinou.

Quando digo que a procura dessas histórias precisa ser ativa, não é um exagero. Livros bestsellers de autores marginalizados são a exceção, não a regra. Para cada livro de um Jefferson Tenório que faz sucesso, existem mais vinte Dan Browns na lista de mais vendidos. 

A literatura existe para nos encantar, nos divertir, nos fazer pensar e pode ser uma maravilhosa ferramenta de transformação social. O livro pode ser o espaço de conhecer o outro ou de conhecermos a nós mesmos. Uma história poderosa pode nos entregar os tijolos que precisamos para construirmos novos mundos. É realmente mágico o que um livro pode fazer. Então se quisermos fazer parte disso, cabe a nós encontrarmos esses livros. Mas não precisamos fazer isso sozinhos.

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