Há espaço para as lágrimas dos homens negros? – Uma entrevista com Stefano Volp

Quando pensamos na ideia de masculinidades, é impossível não considerar as influências externas que esses sujeitos sofrem por questões culturais que atravessam os anos. No entanto, para homens negros, essas influências são violentamente injetadas, como se houvesse um grande abismo entre quem esse sujeito é, e quem a sociedade quer que ele seja, esse último sendo o mais predominante.

Por exemplo: pense em um homem bem-sucedido, referência no seu espaço de atuação e que muito provavelmente tem uma família consolidada. Você pensou em um homem negro? Muito provavelmente não

É como se em nosso imaginário, essa realidade de sucesso não pudesse ser definida para essas figuras, e esse é talvez um dos papéis mais violentos do racismo estrutural. Frases comuns como “homem não chora” e “seja homem” são rapidamente atribuídas a esses meninos negros, quando ainda estão em sua formação inicial, e podem refletir durante toda a vida adulta.

Conforme afirma bell hooks em seu livro A gente é da hora: homens negros e masculinidades, “um homem negro, mesmo aquele que é instruído, que pensa criticamente, ainda é visto com desconfiança pela cultura popular.”

Leia também: A arte de pedir como um modelo de negócio sustentável.

Desconstruindo estereótipos: o trabalho de Volp

Indo na contramão dessa realidade, o autor e roteirista Stefano Volp realiza um trabalho contínuo em suas obras, com o intuito de combater os estereótipos direcionados aos homens negros, mostrando que essas violências diárias refletem no seu ser e estar no mundo.

Com um projeto recente e desafiador aqui no Catarse, Volp, que em 2020 conseguiu bater a meta para a publicação de Homens Pretos (Não) Choram, agora quer adaptar um dos contos da obra para curta-metragem representando não só o livro como um todo, mas também a forma como o homem negro é visto pelo mundo. O curta SECO visa adaptar uma das histórias mais potentes já escritas por ele. Nessa narrativa, um militar negro e viúvo percebe que não recorda a última vez que chorou. Determinado a encontrar essa lembrança, o protagonista Heleno caminha pelas suas memórias e percebe o inevitável: ele está seco por dentro.

A grande sacada do conto é que a obra passeia pela construção do “homem ideal”. No entanto, homens negros não fazem parte desse padrão por questões óbvias, e SECO é uma tentativa de reavaliar a forma como vemos esse sujeito, não apenas na literatura como também no audiovisual.

 

Bate-papo com o autor, diretor e roteirista

Para falar um pouco mais sobre a importância desse projeto, o Catarse Blog e a redatora Dayhara Martins convidaram Stefano Volp para bater uma entrevista.

Dayhara: Em 2020, quando você lançou o projeto do livro físico de Homens Pretos (não) Choram, um dos seus questionamentos foi “Como você enxerga o homem negro?” Enquanto pessoa preta, sei que esse simples fato, de parar e realmente observar alguém (no caso de pessoas pretas) de forma humanizada nos leva para reflexões muito mais profundas. O que te fez lançar esse questionamento naquele período e te deu força para lançar o projeto? Você sente que esses questionamentos ainda permeiam o seu imaginário ainda em 2024?

Volp: Em 2020, eu estava refletindo sobre minha própria existência, sexualidade e me reconstruindo como pessoa. Naquela época, nada fazia mais sentido do que começar a escrever sobre minhas vulnerabilidades e, no final das contas, essa reflexão se mostrou muito coletiva. Além disso, estávamos no auge da COVID-19, enfrentando nossas maiores angústias e aflições, obrigados a nos ouvir em um cenário completamente caótico. Foi nesse contexto que nasceu este livro e a força para lançar o projeto. Quatro anos depois, estou de volta, mais amadurecido e pronto para expandir o debate para outras mídias. Essa é a proposta do meu novo projeto: escalar a discussão sobre masculinidades negras e ir além do formato que agora já conhecemos. Ainda é importante falar sobre tudo isso. A sensação de urgência permanece a mesma. 


Dayhara:
SECO é, sem dúvida alguma, um dos contos mais potentes da sua coletânea. Enquanto o protagonista vive essa intensa busca pelas suas lágrimas, você sente que esse projeto é a sua intensa busca pelo seu direito de ser visto para além de qualquer estereótipo? Mas dessa vez, com um final feliz. 

Volp: Definitivamente, eu quero um final feliz para minha vida e desejo ser percebido além dos estereótipos. Dar continuidade ao projeto é também entender que não sou o único a querer isso; esse desejo é coletivo, um sonho gestado pelo nosso povo, pelos nossos ancestrais. É um direito pelo qual vale a pena continuar desbravando o desconhecido, expondo-se em textos e projetos, e calculando alternativas para encontrar uma plataforma onde possamos ser ouvidos.

Dayhara: Todo leitor de Volp sabe da sua facilidade em passear pelos gêneros, seja nos thrillers, dramas oucontos. Você é um autor que não tem medo de se aventurar. O curta de SECO até então é a sua maior aventura?

Volp: Não sei se é a maior, mas é de fato uma das maiores. Trabalho com cinema há cinco anos, então a adaptação literária é algo bastante comum para mim. No entanto, dirigir é uma experiência nova; esta será minha primeira vez. Mesmo assim, sinto-me mais do que preparado, como se eu tivesse nascido para desempenhar essa função também. O conto "SECO" nasceu como um roteiro de curta-metragem, o que significa que esse curta sempre existiu na minha cabeça. Só agora tive a coragem de levar essa ideia ao mundo e pedir ajuda para realizá-la. 


Dayhara
: Assim como em outros cenários, o mercado audiovisual ainda dá pouca visibilidade para profissionais não-brancos. Você vê o projeto desse curta como um pontapé inicial para que outras pessoas assumam também o protagonismo de criar, adaptar e executar suas próprias histórias, inclusive nas telinhas?

Volp: Com certeza. Tenho acompanhado o trabalho de muitos diretores e roteiristas negros no Brasil, e a luta é inevitável. Fazer cinema no Brasil já é caro e complexo; para pessoas não-brancas, tudo é sempre mais difícil. Paradoxalmente, pessoas marginalizadas precisam aprender a fazer de tudo um pouco para sobreviver. Desenvolvemos nossas próprias tecnologias para tentar ascender socialmente. Este é o mundo capitalista e racista em que vivemos. No final das contas, não há ninguém melhor do que nós para desempenhar múltiplas funções dentro do mercado. Poder receber por esse trabalho de forma digna, sendo observado enquanto artista, que trabalha uma obra de arte, é o que a gente não costuma receber.... e é o que faz toda a diferença. 


Dayhara:
Por fim, gostaria de saber se você pode deixar um pequeno recado aos apoiadores do seu atual projeto, como eles estarão impactando a sua vida acreditando nessa história?

Volp: Eu vim de um lugar onde nada disso seria possível, um lugar onde as pessoas temem sonhar alto. Só tenho conseguido atravessar os obstáculos entendendo que não chegamos a lugar nenhum sozinhos. É por isso que continuo apostando no financiamento coletivo. Quem apoia esse projeto não apenas me dá a oportunidade de me expressar artisticamente, mas também emprega todas as pessoas envolvidas, desde um eletricista até um fotógrafo. Se você parar para pensar, este é um projeto que não só impacta os profissionais envolvidos, mas constroi um legado que influenciará inúmeras pessoas, uma vez que o filme esteja pronto. O projeto não termina quando o filme fica pronto; ele apenas começa. Quero lutar pela distribuição do filme em escolas e em qualquer espaço onde seja possível discutir sobre a crise do masculino e a formação de homens melhores. Tudo isso influencia e impacta diretamente a sociedade. É um projeto muito potente e que merece confiança. 

 

A campanha do curta SECO está disponível no Catarse até 22/07/2024, e conta com apoios que vão desde a inclusão do seu nome nos agradecimentos, até a participação em uma diária de gravação. Apoie o cinema nacional independente!

Dayhara Martins
Redatora e revisora, fala de livros na internet há mais de 10 anos. Criadora do Raízes do Horror, um clube de leitura que foca em literatura de horror com o olhar para raça, classe e gênero.

Talvez você se interesse...

Junte-se à conversa

Há espaço para as lágrimas dos homens negros? – Uma entrevista com Stefano Volp

Quando pensamos na ideia de masculinidades, é impossível não considerar as influências externas que esses sujeitos sofrem por questões culturais que atravessam os anos. No entanto, para homens negros, essas influências são violentamente injetadas, como se houvesse um grande abismo entre quem esse sujeito é, e quem a sociedade quer que ele seja, esse último sendo o mais predominante.

Por exemplo: pense em um homem bem-sucedido, referência no seu espaço de atuação e que muito provavelmente tem uma família consolidada. Você pensou em um homem negro? Muito provavelmente não

É como se em nosso imaginário, essa realidade de sucesso não pudesse ser definida para essas figuras, e esse é talvez um dos papéis mais violentos do racismo estrutural. Frases comuns como “homem não chora” e “seja homem” são rapidamente atribuídas a esses meninos negros, quando ainda estão em sua formação inicial, e podem refletir durante toda a vida adulta.

Conforme afirma bell hooks em seu livro A gente é da hora: homens negros e masculinidades, “um homem negro, mesmo aquele que é instruído, que pensa criticamente, ainda é visto com desconfiança pela cultura popular.”

Leia também: A arte de pedir como um modelo de negócio sustentável.

Desconstruindo estereótipos: o trabalho de Volp

Indo na contramão dessa realidade, o autor e roteirista Stefano Volp realiza um trabalho contínuo em suas obras, com o intuito de combater os estereótipos direcionados aos homens negros, mostrando que essas violências diárias refletem no seu ser e estar no mundo.

Com um projeto recente e desafiador aqui no Catarse, Volp, que em 2020 conseguiu bater a meta para a publicação de Homens Pretos (Não) Choram, agora quer adaptar um dos contos da obra para curta-metragem representando não só o livro como um todo, mas também a forma como o homem negro é visto pelo mundo. O curta SECO visa adaptar uma das histórias mais potentes já escritas por ele. Nessa narrativa, um militar negro e viúvo percebe que não recorda a última vez que chorou. Determinado a encontrar essa lembrança, o protagonista Heleno caminha pelas suas memórias e percebe o inevitável: ele está seco por dentro.

A grande sacada do conto é que a obra passeia pela construção do “homem ideal”. No entanto, homens negros não fazem parte desse padrão por questões óbvias, e SECO é uma tentativa de reavaliar a forma como vemos esse sujeito, não apenas na literatura como também no audiovisual.

 

Bate-papo com o autor, diretor e roteirista

Para falar um pouco mais sobre a importância desse projeto, o Catarse Blog e a redatora Dayhara Martins convidaram Stefano Volp para bater uma entrevista.

Dayhara: Em 2020, quando você lançou o projeto do livro físico de Homens Pretos (não) Choram, um dos seus questionamentos foi “Como você enxerga o homem negro?” Enquanto pessoa preta, sei que esse simples fato, de parar e realmente observar alguém (no caso de pessoas pretas) de forma humanizada nos leva para reflexões muito mais profundas. O que te fez lançar esse questionamento naquele período e te deu força para lançar o projeto? Você sente que esses questionamentos ainda permeiam o seu imaginário ainda em 2024?

Volp: Em 2020, eu estava refletindo sobre minha própria existência, sexualidade e me reconstruindo como pessoa. Naquela época, nada fazia mais sentido do que começar a escrever sobre minhas vulnerabilidades e, no final das contas, essa reflexão se mostrou muito coletiva. Além disso, estávamos no auge da COVID-19, enfrentando nossas maiores angústias e aflições, obrigados a nos ouvir em um cenário completamente caótico. Foi nesse contexto que nasceu este livro e a força para lançar o projeto. Quatro anos depois, estou de volta, mais amadurecido e pronto para expandir o debate para outras mídias. Essa é a proposta do meu novo projeto: escalar a discussão sobre masculinidades negras e ir além do formato que agora já conhecemos. Ainda é importante falar sobre tudo isso. A sensação de urgência permanece a mesma. 


Dayhara:
SECO é, sem dúvida alguma, um dos contos mais potentes da sua coletânea. Enquanto o protagonista vive essa intensa busca pelas suas lágrimas, você sente que esse projeto é a sua intensa busca pelo seu direito de ser visto para além de qualquer estereótipo? Mas dessa vez, com um final feliz. 

Volp: Definitivamente, eu quero um final feliz para minha vida e desejo ser percebido além dos estereótipos. Dar continuidade ao projeto é também entender que não sou o único a querer isso; esse desejo é coletivo, um sonho gestado pelo nosso povo, pelos nossos ancestrais. É um direito pelo qual vale a pena continuar desbravando o desconhecido, expondo-se em textos e projetos, e calculando alternativas para encontrar uma plataforma onde possamos ser ouvidos.

Dayhara: Todo leitor de Volp sabe da sua facilidade em passear pelos gêneros, seja nos thrillers, dramas oucontos. Você é um autor que não tem medo de se aventurar. O curta de SECO até então é a sua maior aventura?

Volp: Não sei se é a maior, mas é de fato uma das maiores. Trabalho com cinema há cinco anos, então a adaptação literária é algo bastante comum para mim. No entanto, dirigir é uma experiência nova; esta será minha primeira vez. Mesmo assim, sinto-me mais do que preparado, como se eu tivesse nascido para desempenhar essa função também. O conto "SECO" nasceu como um roteiro de curta-metragem, o que significa que esse curta sempre existiu na minha cabeça. Só agora tive a coragem de levar essa ideia ao mundo e pedir ajuda para realizá-la. 


Dayhara
: Assim como em outros cenários, o mercado audiovisual ainda dá pouca visibilidade para profissionais não-brancos. Você vê o projeto desse curta como um pontapé inicial para que outras pessoas assumam também o protagonismo de criar, adaptar e executar suas próprias histórias, inclusive nas telinhas?

Volp: Com certeza. Tenho acompanhado o trabalho de muitos diretores e roteiristas negros no Brasil, e a luta é inevitável. Fazer cinema no Brasil já é caro e complexo; para pessoas não-brancas, tudo é sempre mais difícil. Paradoxalmente, pessoas marginalizadas precisam aprender a fazer de tudo um pouco para sobreviver. Desenvolvemos nossas próprias tecnologias para tentar ascender socialmente. Este é o mundo capitalista e racista em que vivemos. No final das contas, não há ninguém melhor do que nós para desempenhar múltiplas funções dentro do mercado. Poder receber por esse trabalho de forma digna, sendo observado enquanto artista, que trabalha uma obra de arte, é o que a gente não costuma receber.... e é o que faz toda a diferença. 


Dayhara:
Por fim, gostaria de saber se você pode deixar um pequeno recado aos apoiadores do seu atual projeto, como eles estarão impactando a sua vida acreditando nessa história?

Volp: Eu vim de um lugar onde nada disso seria possível, um lugar onde as pessoas temem sonhar alto. Só tenho conseguido atravessar os obstáculos entendendo que não chegamos a lugar nenhum sozinhos. É por isso que continuo apostando no financiamento coletivo. Quem apoia esse projeto não apenas me dá a oportunidade de me expressar artisticamente, mas também emprega todas as pessoas envolvidas, desde um eletricista até um fotógrafo. Se você parar para pensar, este é um projeto que não só impacta os profissionais envolvidos, mas constroi um legado que influenciará inúmeras pessoas, uma vez que o filme esteja pronto. O projeto não termina quando o filme fica pronto; ele apenas começa. Quero lutar pela distribuição do filme em escolas e em qualquer espaço onde seja possível discutir sobre a crise do masculino e a formação de homens melhores. Tudo isso influencia e impacta diretamente a sociedade. É um projeto muito potente e que merece confiança. 

 

A campanha do curta SECO está disponível no Catarse até 22/07/2024, e conta com apoios que vão desde a inclusão do seu nome nos agradecimentos, até a participação em uma diária de gravação. Apoie o cinema nacional independente!

Sobre quem falamos nessa história

No items found.

Sobre quem falamos nessa história

No items found.

Traga seu projeto criativo ao mundo!

Comece seu projeto