Quando uma tragédia acontece, é comum vermos uma onda inicial de solidariedade e mobilização. Muitas pessoas se informam, doam dinheiro, mantimentos e itens de primeira necessidade. No entanto, com o passar do tempo, é natural que o assunto vá se dissipando dos noticiários e da mente das pessoas, sob a falsa impressão de que a urgência inicial foi solucionada.
É por isso que aqui, no Catarse, o Rio Grande do Sul continua sendo pauta, pois temos consciência de que não é possível, hoje, definir com precisão quando o estado irá se reerguer. Embaixo da água que inundou 478 municípios gaúchos, há milhares de casas, escolas, faculdades, indústrias, comércios, hospitais, empresas, aeroportos, supermercados, farmácias, livrarias, estradas, pontes, estruturas de energia e comunicação, saneamento básico, transporte, entre várias outras necessidades básicas que precisam ser reconstruídas.
Atualmente, o estado tem meio milhão de refugiados climáticos – termo que tem sido utilizado para se referir às pessoas forçadas a deixar suas casas devido a eventos relacionados ao clima –, e para essas pessoas, as lembranças, o trauma e o luto, entre diversas outras questões inenarráveis, não se dissiparam. Por isso chegou o momento de dizermos “sejamos todos ambientalistas” e continuarmos com essa pauta.
Apesar do recorrente histórico de desastres hidrológicos no sul do país, em maio vivemos um período inimaginável diante do maior desastre climático do país. Diante os acontecimentos, nós, do Catarse, assim que percebemos a proporção da tragédia, criamos uma página com toda a comunidade gaúcha inscrita em nossa plataforma para ajudá-los a ter maior visibilidade. Também ativamos o nosso Protocolo Resiliência para auxiliar a todos na reorganização mínima de suas vidas, oferecer suporte a amigos e familiares e revisar estratégias de lançamento e produção de suas campanhas.
Entendemos que naquele momento era necessário procurar meios de ajudá-los a se estruturarem de forma que fosse possível, e agora que, de certa forma, é possível respirar em meio a tudo que acontece durante o processo de se reerguer, conversamos com os editores Karen Soarele, da Jambô Editora; Lobo, da Brasa Editora, e Taína Lauck, da Taí Editora; profissionais que usam nossa plataforma para viabilizar seus projetos para sabermos o impacto sofrido e o que fizeram para recalcularem a rota de seus sonhos e vida.
O que a água levou e trouxe
Karen nos relatou que a Jambô teve dois dos seus três estoques inundados. No momento do incidente, a editora estava em transição, operando com o estoque antigo, o estoque novo e com o estoque da gráfica – este último pertencente a um fornecedor que estava armazenando uma parte significativa dos livros. Infelizmente, tanto o estoque novo quanto o da gráfica foram severamente alagados.
Inicialmente era difícil tangibilizar o impacto, mas agora estima-se que o prejuízo tenha sido em torno de R$ 4.235.000. Os livros perdidos incluem Coleção Arton, 3DeT Victory, Ordem Paranormal RPG, Tormenta20, Coleção Cthulhu, Selton Mello: eu me lembro e vários outros, principalmente em suas versões luxo. Todos eles foram totalmente danificados pela água contaminada da enchente, impossibilitando qualquer tentativa de recuperação, venda ou doação.
Lobo e Samantha, editores da Brasa, nos relataram que, embora o estoque da editora esteja localizado em São Paulo, o escritório e a casa deles tiveram que ser abandonados devido à inundação. Quando perguntamos sobre a tangibilidade do impacto na editora, a resposta foi detalhada e crucial para quem não é do meio editorial ter acesso à íntegra das informações. Pois, assim, é possível compreender como funciona toda a esquematização de uma publicação. Confira:
No mercado editorial, trabalhamos com janelas de tempo para conseguir fazer lançamentos. O trabalho de produção editorial de um livro é longo e artesanal. Um livro, depois que o original dá entrada na editora, leva meses sendo gestado."
Para quem desconhece essa informação, é válido ressaltar que os eventos de quadrinhos são grandes janelas de lançamento no mercado. Muitas das grades editoriais, ou seja, o cronograma de lançamento das editoras, gira em função desses eventos. Sobre isso, Lobo comenta:
No caso da Brasa, perdemos a janela dos eventos da FIQ e PocCon para lançarmos os nossos novos livros: "Fessora", da Line Lemos, "Vicente: lua cheia", de Álvaro Maia e Pablo Marquinho, e "A Princesa dos Brasilossauros", do Mig Mendes. Estes são dois eventos [da FIQ e PocCon] com grande público, interessados no quadrinho autoral brasileiro, ou seja, nossos leitores frequentam esses espaços. Grande parte do faturamento de editoras independentes vem da participação em feiras como estas."
E continua:
A logística para participar de um evento é muito cara. Toda a equipe da Brasa estava trabalhando a todo vapor para fazer isso acontecer. Passagens e estadia compradas, parceladas, com antecedência. Estande no evento já pago. Livros recebendo ajustes finais, prontos para entrar em gráfica. Todo o nosso pequeno capital de giro investido nos livros e no evento para conseguirmos estar presentes. Corremos contra o tempo para dar conta de todas as demandas."
No entanto, poucos dias antes dos livros darem entrada em gráfica, a grande Porto Alegre começou a ser invadida pelas águas. "Ficamos ilhados, sem luz, internet e a água do prédio estava acabando. Tivemos que parar a finalização dos livros e todo o resto do trabalho. Na segunda-feira, tivemos que deixar o apartamento com uma muda de roupa cada e os quatro gatos embaixo dos braços, graças a ajuda de parentes, que também nos ajudaram com abrigo ao longo de todo o mês de maio", informa Lobo. "Parecia cena de filme distópico. Estávamos muito assustados."
O impacto só não foi maior porque parte do estoque da Brasa Editora já havia sido transferida para uma empresa de logística em Osasco (SP), a Transpo, no ano de 2022 quando a Samantha teve câncer e precisou ficar internada no hospital durante seis meses para o tratamento. Até então, eles trabalhavam a logística toda sozinhos. Por outro lado, não havia como movimentar os livros porque o servidor da editora ficou ilhado no apartamento, fazendo com que a participação da Brasa no FIQ ficasse comprometida.
A empresa do software não poderia fazer nada pra resolver o problema e o backup tinha dado erro. Foi então que a Samantha, junto com nosso colaborador do financeiro e a contadora, configurou um novo ERP, dessa vez on-line. Tudo isso em duas semanas. Em cima da data do FIQ, conseguimos emitir uma nota fiscal para que os livros pudessem deixar o depósito rumo ao evento. Temos muito a agradecer ao Daniel e Giul, do Caderno Listrado, a Fernanda Ayres e a Editora Veneta que cuidaram da gente no FIQ. Já a operação na PocCon só foi possível graças a toda energia da Simonética! Vocês são maravilhosos."
Além desses detalhes, Lobo nos relatou que a editora quase faliu duas vezes durante esse processo, mas com a ajuda do mercado editorial como um todo, conseguiram renegociar acordos e atravessar este período. Atualmente, eles não têm trabalhado o editorial, as datas de lançamentos em pré-venda ficaram incertas e certamente não conseguirão cumprir a programação que haviam planejado para 2024, mas isso não quer dizer que a chama da editora irá apagar, eles estão a todo vapor para deixá-la acesa!
Perspectivas em meio o período emergencial
A Jambô já vinha há meses arquitetando a pré-venda do livro Jornada Heroica: Guerra Artoniana, mas em meio a toda tragédia, no dia 6 de maio optaram por criar uma campanha aqui, no Catarse, com o intuito de que fosse um projeto de campanha solidária visando arrecadar o máximo possível para converter em ajuda para pessoas atingidas pelas enchentes. Karen relatou que os bastidores dessa decisão foi tomada em um momento em que a equipe estava dispersa, pois estavam sem luz, sem água e com acesso limitado à internet; e alguns estavam refugiados em casa de parentes. Os que conseguiram se deslocar foram com ela por uma semana para um bairro distante da cidade a fim de usar a luz e internet da casa de uma amiga. Durante esses dias montavam um centro de operações improvisado torcendo para não precisarem voltar no dia seguinte. Diante todo o processo de estruturar a campanha e entender o que era possível fazer pela Jambô tinham que se deslocar fazendo vários desvios para evitar as ruas alagadas, e notícias ruins surgiam a cada momento.
Foi um período em que cada porto-alegrense se perguntou como poderia ajudar aos demais. No início, fizemos coisas mais imediatas, como doar itens que tínhamos em casa ou pedir ajuda a amigos influencers para divulgar as campanhas beneficentes que já estavam no ar. Depois, nos demos conta de que a nossa melhor forma de ajudar seria com o que fazemos de melhor: um financiamento coletivo de livro que despertasse o apoio da comunidade de Tormenta, que é muito unida e altruísta."
Na descrição da página da campanha, a editora falou abertamente que essa campanha não era um financiamento coletivo normal. Isso porque o intuito era apenas ajudar pessoas que estão precisando. E optaram fazer isso pela nossa plataforma para que todos os apoiadores pudessem ter transparência dos valores arrecadados.
A meta da campanha era arrecadar R$ 50.000. Felizmente, no dia 24 de maio, quando a campanha foi encerrada, a editora superou todas as expectativas e arrecadaram um total de R$ 699.697. Isso significa que conseguiram R$ 649.697 a mais do que a meta inicial, representando um aumento de 1299,39% no apoio recebido.
Na página da campanha havia a informação de que o valor arrecadado seria destinado proporcionalmente para colaboradores da editora (funcionários ou freelancers e seus parentes imediatos, exceto sócios) que tiveram perdas pela enchente. Todos os nomes das pessoas amparadas foram informados na página. Isso significa que diversas pessoas receberão seus livros em julho, e funcionários e parentes já possuem uma esperança para reconstruírem seus futuros.
A Jambô, reconhecida como a maior editora de RPG do Brasil, segue buscando novas perspectivas para continuar fazendo o que faz de melhor. Atualmente, o escritório está operando, mas grande parte da equipe ainda não conseguiu retornar, já que o transporte público da cidade está muito prejudicado.
Uma união para que vidas não sejam breves
Taína Lauck, da Taí, relata que a neurose adquirida por ter vivenciado esse tipo de tragédia na infância foi decisiva para escolher a sede da editora em uma sala comercial no segundo andar. Com isso, não foram diretamente atingidos pela água da enchente, mas inevitavelmente foram afetados pelo somatório de consequências econômicas e logísticas advindas de todas as problemáticas que cercam o estado. Infelizmente, as famílias de duas de suas revisoras tiveram as casas diretamente atingidas e estão ajudando no que é possível.
Mas não é porque a Taí Editora não foi inundada que Taína sentiu que deveria ficar em casa sem fazer sua parte. Ela decidiu, um dia de cada vez, agir de forma que pudesse fazer a diferença por meio do Projeto LI: Leitura Integral. Esse projeto sociocultural teve início durante a pandemia, e tem como objetivo incentivar a leitura e a escrita em adolescentes em situação de vulnerabilidade social, utilizando diferentes formas de expressão, como literatura, quadrinhos, música, cinema e mídias.
A colaboração de Taína se intensificou agora, durante a tragédia hidrológica. Ela e seu colega Airton, professor do Instituto Vida Breve, são voluntários no Conselho de Cultura da cidade de Taquara e têm ajudado diariamente desde o início da inundação. Eles estão realizando atendimento à comunidade, triagem de doações e arrecadação de fundos para comprar itens de urgência, como produtos de limpeza, itens de higiene, alimentos, leite, fraldas, além de nebulizadores, camas, colchões e roupas de cama para os mais necessitados.
Aproveitamos este espaço para convidar você a conhecer o Instituto Vida Breve, especialmente agora, pois Taína nos informou que estava previsto a realização do projeto em três escolas de Vila Santa Maria, uma das áreas mais afetadas da cidade. No entanto, devido a todas as perdas (a água atingiu 1,87 metros, restando apenas a estrutura e perdendo todo o material para as oficinas), o projeto foi transferido para a sede da ONG. Isso resultou em uma considerável transferência de recursos para a reconstrução. Ela relata a importância e que a palavra que reforça nesse momento é empatia, ainda mais porque todos os monitores do projeto são jovens da comunidade, também atingidos pela enchente.
Confesso que me apaixonei pela comunidade e pela ONG. O nosso propósito é transformar a oficina em permanente no cronograma da ONG. Acredito muito na transformação social que podemos levar para esses adolescentes.”
Futuros a serem escritos
Cada um dos profissionais das editoras entrevistadas sabe que estão escrevendo o primeiro de muitos capítulos da história da reconstrução do estado do Rio Grande do Sul, assim como de suas vidas. Nós, do Catarse, estamos comprometidos em apoiá-los palavra por palavra, e convidamos você a se juntar a nós nessa jornada. Em breve, publicaremos a continuação desta entrevista com todas as informações para apoiá-los e como você pode fazer a diferença.
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